
As luzes piscavam em cores hipnotizantes cercando árvores douradas. Ouvia risos vindo de todos os lados; famílias apontando enfeites sobre postes, em vitrines, bonecos de neve de plástico com cachecóis. Ouvia uma música que começou a lhe dar dor de cabeça; “Hoje a noite é bela...”. Ouvia numa espécie de transe, como se todo o mundo fosse só essa música. Precisou correr antes de vomitar. Mas essa corrida, desequilibrada e patética, subitamente tirou todo o álcool de seu cérebro. Lembrou. Os olhos que nunca o olhavam com desprezo. As mãos macias, muitas vezes fazendo carícias em sua barba. Seu peso de papel, pulando em seu colo. Lembrou. Os vizinhos apontavam para ele na rua e os moleques faziam gestos de cópula. A maldita. Outro dia apareceu com vestido novo. Não tinha como. Não tinham dinheiro, ele estava desempregado há tempos e ela era desocupada demais para trabalhar. Alguém trocou sexo fácil por aquele pedaço de pano. Lembrou: “Papai, o Natal está chegando. O que Papai Noel irá trazer?”. Lembrou: “Bêbado inútil. Uma hora eu vou para a estrada e sumo. Meu corpo ainda está firme”.
De longe, viu uma luz na janela. Estavam acordadas. Rezou para ser no singular. Tinha desprezo suficiente para dar neste e nos próximos Natais. Palavras bem escolhidas, polidas no coração azedo, limpas na ponta da língua, indo e vindo, esperando a chance de sair. Enfiou as mãos no bolso, esperando o seu milagre: quem sabe sobrou umas moedas, podia ir até a mercearia e comprar um doce. Achou um cigarro rasgado, só o filtro. Se pudesse rezar, talvez não rezasse, mas ergueria os punhos e gritaria todo o ódio de sua pequenez. Queria ter um deus para voltar a face. Queria ter um deus para se sentir injustiçado, escolhido, ao menos odiado por algo que não servisse de risos na vizinhança.
Quando abriu a porta viu as duas sentadas no sofá. Uma sorriu e correu para abraçá-lo. Antes, no entanto, ouviu as palavras de gilete da outra: “Vai esquentar a cama, corno”. Súbito, uma epifania. Colocou a mão carinhosamente no peito da filhinha e pediu carinhosamente para que ela fosse para a cama e se escondesse debaixo dos lençóis. Esperou a menina fechar a porta. Tirou o cinto puído em volta das calças sujas e começou a bater na mulher. Esta gritava, gemia e torcia-se. Deu até cansar. Sentou-se no sofá e ficou olhando pela janela as famílias voltando das compras. Agradeceu a Deus pelo dia. Adormeceu sentado.
Do quarto, a menina ouvia os gritos da mãe, desesperados. Pediu para Papai Noel para que não apanhasse também. Algum tempo depois, o silêncio. Ficou de olho na porta, coração disparado. Quando notou que o silêncio durava muito tempo, juntou as mãos, ajoelhou-se e murmurou baixinho: “Obrigada, Papai Noel”. E dormiu chupando o dedo.
O Natal é tão triste...
ResponderExcluir"Noite feliz" foi o que senti ao entrar aqui e ter descoberto um novo texto...
ResponderExcluirTerminei esfaqueada pelas palavras, mas sorrindo, pois li.
Ai, que facada...
ResponderExcluirPS: Isso é bom.
Eu sei que eu já estou apelando...estresse de final de ano, imagino. Espero conseguir fazer algo menos forçosamente deprimente...
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