sábado, março 26, 2011

saturno me espreita...

   Deve ser meu riso. Deve ser alguma maldição das boas, das antigas. Deve ser o fato de que, num estranho equilíbrio, não só recebemos não o amor que fazemos, mas sim a desconfiança, o ódio, a indiferença. Sei de gente que sente-se culpada por espirrar em público. Em público, sempre me mostro misantropo, misógino, polêmico. Por dentro, sei que minha aposta sempre foi na rapidez que a vida nos surpreende e nos re-surpreende. Pena, meu caro Heródoto, que pulamos sim duas vezes na mesma água, e não de um rio, mas de um lago feito com o arrastar lento de nossos pés em torno de nós mesmos...

 Deve ser algum tipo de ironia que sempre dói, mas também sempre cura. Devem ser meus olhos, que nunca olham para nada em especial, e olham para tudo ao mesmo tempo. E eu, que me achava menos sujo, menos carregado de pedras nos bolsos, tenho um grande lago a me prender, numa história que de tão cíclica, tornou-se  mito: o mito de que, afinal, somos não a tal alma andrôgena platônica, a chorar pelo outro. Somos uma ideia, um reflexo no próprio lago, e  narcisos medrosos de erguer os olhos, enxergamos somente o que podemos destruir: nós mesmos.

 Nesse espaço, criamos o diálogo sem voz, a comunicação feita pedra, o devaneio da pecepção. Não se ouve ninguém e ninguém se ouve, pois nunca falamos de fato com o outro e o outro nunca fala conosco. Monadas, malditas monadas, somos apenas matéria isolada de tudo e de todos, cismando e sonhando que vivemos, que podemos, que somos, quando, no final, nem a palavra nos restaura, nem o amor que nunca nos é dado de fato, nos inflama.

 Tudo isso para dizer: o mito que criei devora-me. Meu próprio saturno é acreditar que há algo além do óbvio, do lago, da solidão...
 

domingo, março 20, 2011

Dança

  _Não sei dançar...
  _ Nem eu...
  _Mas dance comigo?
  _Você não disse que não sabe?
  _Não sei...mas quero

  Dançaram. Totalmente fora do ritmo da música que não saberiam posteriormente dizer qual era a música que tocava fora deles. Dentro, poderia ser Debussy, Nina Simone e até nenhuma, só o som de dois corações que, sem combinarem, entraram numa estranha sincronia, causando em seus olhos uma rara sinfonia.

  Em volta, todos entenderam mas não puderam acompanhar o ritmo.

domingo, março 13, 2011

Diálogo

  Esperou que ela dormisse para se levantar. Cuidadosamente, tirou seus braços debaixo, dela, que se aninhava como um ser indefeso. E era. Naquele momento, ela estava indefesa. De olhos fechados, cabelos loiros caindo pelos ombros, expressão suave, ela era apenas um corpo inerte. Sem ruídos e agitações, ele conseguiu manejar sua fuga até a cadeira mais próxima. Acendeu um cigarro e ficou olhando, entre o admirado e enternecido pelo olho bom e entre o cético e o sarcástico pelo olho ruim. "Dorme como um anjo". "Espere que acorde e você verá que ao fim, sempre há uma fresta para escapar".

 Entre uma baforada e outra: " Poderia ser feliz aqui, ao lado dela. Há paz, afinal..." "Paz é para os bovinos. E a única real é a conquistada, não a sorteada..." Ela mexeu-se um pouco e ele soltou uma baforada bem densa para o alto: " Ela é muito doce e esforça-se para entender-me. raro. Muito rara. " "Espere e verá que logo ela entenderá o quanto você se sujeitou à exclusão e confortou-se." Levantou-se e ligou baixinho o rádio. Tocava "No Surprise" do Radiohead. Sorriu com a coincidência.

 "Sorri mais nesses dias do que em anos. Senti-me novamente com energia para conseguir sair da frente do computador". "Empolgação. Há-de passar, como tudo". Decidiu levantar-se e olhar pela janela. Céu coberto de nuvens escuras, vozes distantes aprontando o cotidiano, um pássaro passou voando sem alterar a rota. Pensou consigo mesmo sobre as rotas da vida e suas curvas. Ela respirou um pouco mais alto.

 Olhou, sentindo-se um assassino. Olhou em volta e viu a porta, a chave e a maçaneta. Seria só alguns passos  e estaria de volta para seu mundo, sua fortaleza, sua cova tão profundamente cavada. Ficou alguns segundos encarando-a. Ela sorriu. Devia estar sonhando. Olhou de volta para a porta. Sentou-se e ficou encarando-a. Sentindo a música tocar, o leve ar do espaço compartilhado se encher de uma expectativa, o relógio alongar-se propositalmente.

 Colocou as mãos no rosto, tentando tampá-lo. No movimento, viu: foi ele que tinha levado as mãos ao rosto. Foi seu movimento, sua escolha, sua energia. Fez novamente. Levantou os dois braços, alternadamente. Mexeu os dedos. Começou a mover os pés e, sentado na cama, a balançá-los, como fazia quando era criança e sentava-se no banco do balanço. Sentiu-se encher de uma força que parecia perdida. Ela acordou com tanta movimentação, e numa voz angelical e sedosa, perguntou-lhe: "Você está bem?"

 Ele abraçou-a. Deixou que uma lágrima escorrendo até um sorriso fosse sua resposta.

terça-feira, março 08, 2011

Promessas

Que mão poderia desenhar, tal geometria? 
Que abre num rompimento o susto do mundo, 
de uma forma que já não mais existia? 


Inventa-nos, novamente,
 o céu, a lua, as estrelas, 
pois era isso que, em criança, 
nos sonhos, eu via!


Que olhos me resgatam dessa agonia?
Que surge sem surpresa do sono profundo,
sem convite, revelando o que não se via?


Ensina-nos, caridosamente,
o escudo, a mortalha, as velas, 
pois é isso que, sem esperança,
ainda me protegia!


E ao deixar terra arrasada,
deixa uma lágrima de garantia,
de que no fim da estrada,
será começo de dia!

segunda-feira, março 07, 2011

Botão de rosa branco

  Ali, distante e melancolicamente bela, ela estava. Olhando de si para si, fugindo do olhar dos outros, parecia deslocada e assustada. Incomum. Sem máscaras, seus olhos pareciam dois grandes botões de rosas, prontos para assumir sua fragilidade e sua brevidade naquele deserto. Brancos. Botões brancos. Puros e intocados pois as mãos dos jardineiros sempre lhe foram estranhas.

 Súbito, seus olhos se cruzam com os meus. Indiscretos, meus olhos faziam sombra a sua clareza. Ela sentiu o golpe e, num ímpeto, apertou com tanta força o copo que segurava, que este quebrou e a cortou. O sangue encheu um lenço e não era mais dela. Era o meu. Não-convidado, invadi com minha aspereza e sede seu espaço. Ela começou a correr, em direção ao banheiro. Fui atrás, pra me desculpar.

 Interrompi sua fuga no meio. Ela virou-se, os botões de rosas me feriram, me lembraram da minha condição humana, previsívelmente desnecessária. Queria dizer-lhe que a entendia, mas não entedia de fato. Que era como ela, mas meus olhos não a enganariam. Que poderia mudar, mas nem as palavras, nem o sentido, se construiriam defronte aos meus olhos cansados e tristes. Beijei-a, roubando o que restava. Fui-me, como o ladrão envergonhado.

 Em casa, encarei por longas horas o teto, sem piscar. Fechando os olhos, via como se tivesse encarado dois sóis, o reflexo daqueles botões em minhas retinas. E senti-me ainda mais triste por ser o que sou.

Conversas na madrugada

   Não era para ser. Nem intentava. Começou com um sussurro vindo do outro lado da parede. Encostou o ouvido e alguém lhe perguntava se estava dormindo. Ficou sem saber o que responder. Seria com ele? Escutou novamente. Ninguém respondeu do outro lado. Era uma voz, feminina e arranhada, como se muita vida tivesse passado por aquelas amígdalas e cobrado seu preço. Novamente. Decidiu responder, baixinho. Não, não estava. Tinha dificuldades. A voz aumentou dois tons: "Eu também". Nada mais se disse e o silêncio se fez, pesado como uma mortalha.

 Na outra noite, ouviu novamente. Encostou o ouvido. A mesma pergunta. Respondeu, um pouco mais alto do que na noite anterior. A resposta foi a mesma, no mesmo tom, com o acréscimo: " Odeio isso." Ele também odiava e não sabia a razão. Estava sempre cansado, com olheiras enormes e sempre com uma barba mal-feita. Diziam-lhe "o boêmio" e ele nunca quis corrigir isso. Sentia-se cansado de ter que construir alguma imagem aos outros e só sorria e concordava.

 Assim, noite após noite, palavra após palavra, foram aumentando a conversa. De poucas, passaram para horas. E uma curiosidade inexistente, surgiu. Como seria a dona daquela voz? Gostava do riso dela e imaginava-a levantando a cabeça para rir, e, quem sabe?, um longo cabelo ainda com vida, balançando no escuro. Algumas noites acariciou a parede, coisa rara em alguém em que as noites eram apenas intervalos sombrios de dias mecanizados. Algumas noites disse boa noite com carinho, mesmo sendo já manhã.

 Os dias agora demoravam mais para passar, pois queria logo deitar-se e iniciar aquela estranha sinfonia noturna, de murmúrios, risos abafados e confissões. Deram para fazer confissões. Ficou sabendo da vida dela, das dificuldades, dos resquícios de sonhos. Ele contou da sua, sem romantizar, de forma bruta e severa, como nunca. Nunca houve nenhum tipo de entrevero, de proibição ou de desprezo. Aquela parede, de concreto armado e pintada de cinza, era um quadro impressionista de danças, de rosas e de vidas que pareciam tiradas de outros tempos.

 Um dia, entrando no prédio, ouviu aquela voz cumprimentando uma vizinha. Sentiu seu coração disparar. Sentiu um frio no estômago, como se fosse faltar-lhe todo o ar. Subiu as escadas, silenciosamente, quase rastejando, para não ser notado. No outro lance, cruzou com ela. Não lhe levantou os olhos e escondeu o rosto. Ainda de relance a viu, descendo. Bela, nova e elegante. Muito mais bonita do que imaginara. Entrou em casa sentindo palpitações e tremores que nunca tinha sentido antes. Deitou-se debaixo da cama, segurando um travesseiro entre as pernas.

 De noite, quando ouviu o sussurro, não respondeu e mudou-se na semana seguinte, para nunca mais.

sábado, março 05, 2011

Os dias cobram seu preço

  Tentou segurar o ar o máximo possível. Contou mentalmente quanto tempo resistiria, sem respirar, sem necessitar do mundo. Em menos de um minuto, desistiu. Deitou-se, olhando o teto do quarto, manchado pela fumaça constante de cigarro. Brincou por algum tempo de tentar imaginar alguma figura naquela mancha. Mas seus olhos cansaram-se e adormeceu.

 Não houve nenhum sonho. Acordou como acordava todos os dias de uma vida que poderia ser contabilizada em grupos. Grupo de sobreviver: 80% dos dias. Grupo de agradar aos outros ou não desagradar a ninguém: 18%. Grupo de fugir: 1%. Grupo de sorrir: 1%. Fazendo essa conta mental, fez força para conseguir sorrir e manter-se acima, ao menos, da fuga. Não conseguiu e já era tempo de sobreviver e viver aos outros.

 No caminho do trabalho, reparou que os dias costumavam ser menos cinza, mas não tinha certeza se isso era uma lembrança ou algum filme que vira recentemente. Também teve a impressão de que, em algum lugar da memória, alguns sentimentos costumavam aquecer o peito e acelerar o coração. Acendeu um cigarro e pensou em alguma coisa que poderia ter causado tal sensação. Na curva da avenida, bem no alto, um outdoor mostrava  um belo hamburger. Não conseguiu sorrir.

 Na volta, novamente a ideia de que o mundo andava num ritmo mais lento, menos ruidoso e mais compassado. Os sons das buzinas e dos escapamentos davam lugar a algum tipo de melodia, que seus ossos insistiam em vibrar. As luzes dos freios e dos semáforos inexistiam em algum cheiro de flor que juraria ainda sentir. Colocou a mão no peito e sentiu, assustado, que o coração se movimentava em saltos descompassados. Provavelmente, seria um ataque cardíaco e todas as lembranças eram de algum lugar, de algum tempo, que a noite escondeu em seus braços. A grande noite, invenção de nossos medos, agora não mais conseguia esconder aquelas sensações.

 Os motoristas em volta do carro batido e do cadáver, apontavam para a expressão infantil do sorriso num rosto calmo, como quem aponta para si mesmo.