sexta-feira, dezembro 10, 2010

Espelho em frangalhos

Sou múltiplo. Sou aquele que suspira em retinas alheias, de ombros curvados e, ao mesmo tempo, tenta rir do cachorro que corre atrás do rabo. Sou múltiplo pois temi ser sozinho, nesse mundo em que ser sozinho se constitui crime contra os bons costumes, passos apressados de medo, murmúrios entre dedos apontados em minha direção.Sou múltiplo porque a História de minha humanidade matou messias e condenou galileus ao silêncio; invadiu com ânsias as polônias durante o sono e fincou bandeiras tremulantes em nome de democracias de fachada. Sou múltiplo porque fui índio, capitão de galés e beneditino. Sou múltiplo pois estou aqui, em Tóquio, em Frankfurt, em Quixombó. Sou múltiplo devido a linha de produção que corre rápida, com peças exigindo seus parafusos e roscas e suas manoplas já que no final haverá um sorriso, em forma de dinheiro e corações em disparada pelo vício do novo, do consumo.Sou múltiplo pelas páginas de internet, pelas lombadas dos livros descansando nas estantes, pelas palavras que perdem a conexão numa memória analógica, pelos sons que misturam o jazz do estéreo, os gritos da televisão, os miados doentios de gatos nos telhados, as sirenes salvando e condenando vidas, os outros de minha espécie em brigas ou amores fellinianos, um pedir "amor" que nunca poderá ser atendido e entendido, um exigir "vá" que será celebrado e carpido pelas horas. Sou múltiplo pela minha desatenção em coisas bonitas, sonoras e caras.Perdi a aula de vida...

Mas essa multiplicidade é o soro que me cura de tentar achar as respostas que responderiam uma melancolia que não é só minha e não ficará só em mim. Somos nós os espelhos dos outros, podres desfigurados cambaleantes, tonteando e se esbarrando mundo afora, mundo adentro, procurando um rosto em que se resgatar e se fiar. Essa multiplicidade é o mal que me proíbe de correr atrás do meu próprio rabo, satisfeito com o dia, com as nuvens em forma de algodão que se formam num espetacular azul como nunca. Essa multiplicidade é que me leva ao espelho, toda manhã, desejando ser somente o rabo, ou quem sabe aquela última nota que ressoa de um trompete tocado há trinta anos, num bar escondido no Village, um pouco antes do sol nascer e a vida recomeçar a mastigar e digerir.

5 comentários:

  1. Saiba que foi meu "jornal" essa manhã. O café que me acompanha, trouxe toda a "amargura" que você não dispôs.
    Até.

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  2. Ah, queria estar nessa sua madrugada, Paola Bay. Mas estava a encarar o pé direito, ouvindo nos motores alheios e nos portões inquietos o que escrevia The Last Joke.

    É suerral sentir que o que se lê já está encrustado em alguma parte ddas próprias vísceras.

    The Last Joke, como diria o amigo que eu mesmo criei, você também enloucresce.

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  3. Antes ser múltilpo a não ser o "eu" , "o outro", "ou qualquer coisa de intermédio".

    P.S.: Eu sei que você vai me chamar de imbecil, que dirá que atento para futilidades, mas, puta que o pariu!, dá pra fazer uma pequena revisão antes de publicar os textos?
    Invejo sua escrita e admiro como você trabalha, mesmo na prosa, com excelentes fanopeias e logopeias.
    Ler, no entanto,algumas escorregadas bestas com acentuação, pontuação, etc. (que você sanaria com uma simples releitura)me irritam muito.
    Gostaria de repetir que gosto de sua escrita e que a considero, por exemplo, melhor que a minha. Só peço, portanto, que você me ajude a ler um pouco mais fluidamente seus textos.
    até mais,
    j.e.

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  4. Paola: janela triste essa que te abri de manhã...

    R.: De certa forma, sou imaginário, ou produto dela. O anonimato, o espaço invisível nos garante a liberdade que o olhar dos outros transformam em grades.

    j.e.: Agradeçamos a Deus pelos professores de gramática e pelos dermatologistas...

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  5. Pelo visto, os dermatologistas são mais úteis. Agradeçamos a deus, portanto, só por estes.

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