sexta-feira, maio 20, 2011

Poesia

   Súbito, ouviu a música. Alta, intempestiva e sanguínea. Tentou, por alguns segundos, emudecê-la, com a força da razão. Fixou os olhos em imagens degradantes de si. Fixou os olhos nos olhos dos outros. A música reverberou com mais força, indiferente a sua vontade moldada na cartilha. Tal qual uma marionete, seu corpo começou a se mover.

Primeiro a cabeça. Fez movimentos violentos, quase deslocando o pescoço. Seus olhos se revoltavam em órbitas desestruturantes. Sua boca murmurava o som primordial. Cada vez mais rápido, cada vez mais intenso.
Logo seu tronco se contorcia em sibilantes serpentinas terríveis. Não parecia uma dança propriamente dita; antes, um esconjuro do espírito sedento de livrar-se da matéria.

Os braços moveram-se como socos no ar, abruptos e reptilícios. Desconexos, ouvia-se os ossos estralando a cada golfada de energia. Os pés, resistiam, no entanto. Fixos, enamorados do concreto, mantinham o último vestígio da história dos bons hábitos. Como raízes batizadas ou garras pedagogicamente construídas, agarravam-se ao chão, desesperadamente.

A música agora beirava o som da caverna dos terrores. Gutural, profunda e hipnotizante. Ecoava do fundo entre murmúrios de sangue aquecido e veludas peles desnudas. Os pés começaram a ceder. Primeiramente, de forma ainda a manter-se em contato com o real. Os calcanhares giravam, sem deixar o solo. Marcando um ritmo, movia-se em cadências mais e mais contundentes. Finalmente, um se desprendeu. O correto seria dizer: revoltou-se. Martelou com força animal o tablado, causando uma sonoridade assustadora. Era como se quisesse vencer a gravidade, pois do martelar se passou aos saltos. Saltos precedidos já de gritos, acompanhados de urros e finalizados com a expectativa do próximo. O som do corpo no ar era o som do medo vencido; da vingança contra o meio; do romper de correntes soldadas na era imemorial, por mãos delicadas, puras e descansadas; correntes que se fiscalizava e se reforçava com o ouro que o olhar do sim abrilhantava.

.....

Alguns alunos assustados correram para chamar alguém, assim que o professor começou a se mover de forma estranha. Parecia um ataque epilético. À porta, outros professores, alunos de outras salas, bedéis, olhavam aos risos disfarçados aquele surto súbito.

.....

Mas isso se conta como quem conta uma lenda. Uns dizem que o professor era drogado. Outros, que ele estava estressado. Alguns juram que viram também alguns alunos dançando, como se ouvissem a mesma música. Mas quem conta com esse final, termina se benzendo dizendo cruz-credo entre os sinais-da-cruz.

terça-feira, maio 17, 2011

Porque me é tudo novo e insuspeito
  não tenho ainda a voz que seja a justa
  medida do mundo, de dores feito,
  mas hoje tão estranho que assusta!

  A pedra e a espada tão conhecidas,
  quedadas em algum canto do lar,
  abrem espaço para novas feridas,
  ou para um caminho ainda no ar.

 Se sei algo do mundo é a queda,
 o escuro e o conforto da solidão,
 me surpreende o que não é perda.

 Mas falo agora com o som do trovão,
 da chuva que esteve sempre em espera,
 pingando teu nome em novo verão.

sexta-feira, maio 06, 2011

Hello, dark, my old friend...

  Olhar-me ao espelho não é uma possibilidade de auto-ajuda ou auto-crítica. É perceber que, no final, será essa a única companhia que tive pela atribulada vida. Todos os rostos que, por algum momento dividiram esse espaço, foram como a pedra drummoniana, a me distrair de que, a solidão não é um estado: é uma essência.

  Inventamos deuses, cânticos, heróis, mitos, amigos, a linguagem, a infâmia chamada alma, a desculpa chamada lógos, não para entendermos o universo. Inventamos para cobrirmos, de tempos em tempos, a imagem que reflete a única condição exata e inexorável: o fato do espelho não mentir; e a verdade chamada tempo.

 Inventamos o relógio para aprisioná-lo em outra tentativa pueril e impotente de controlar esse espírito que insistimos em querer enganar. Mas, é um espelho: enganamos a nós mesmos, como quem abre uma janela e pretende que não é a mesma vista, nem a mesma rua.

 Por isso, leio. Ali, encontro um sedativo contra o vício do espelho, o medo do espelho, a vida que só existe, de verdade, defronte ao espelho. O resto são socos no ar, fingindo ser bater de asas...