terça-feira, dezembro 27, 2011

Novo livro de filosofia

   Ainda tenho olhos, mesmo acanhados por detrás de óculos cada vez mais grossos. Ainda tenho a pele, cada vez menos sensível ao toque do outro, como se surgisse por debaixo escamas. Ainda respiro, de quando em quando, com um pouco mais de esforço do que o mecânico de enviar algum oxigênio para dentro do corpo que me move. Move, com cada vez menos empatia e menos sangue: as pernas preferem, por hábito e por filosofia recém-descoberta, ficar prostradas em posição de 3:50. Sinto, não saberia mais dizer o porquê, como se fosse um mero mecanismo de carne cada vez mais flácida e vontade mais fleumática; sinto como se tivesse me entregado sem resistir. Mas isso é de outro livro, não o novo.

 Sei, mais por inércia do que por cognição voluntária, do mundo em geral. Ainda sinto o gosto de cerveja, mas de quando em quando: não se deve relaxar o espírito, diz meu novo livro de filosofia, ainda não escrito por ninguém, mas que vou reconhecendo no olhar dos outros. Não se deve relaxar, pois haverá o dia do algo. Nesse, tenho minhas próprias imagens e minha própria trilha sonora. Não me entrego mais: meu livro, lido no olhar dos outros, diz que devemos nos preservar, moldar nossos sorrisos no ângulo exato que construa um agudo com o sorriso do homem à direita, sem deixar de fazer um semi-círculo com os cílios da mulher logo a frente. É difícil essa nova filosofia, e por vezes quase abri mão dela. Mas resisto.

 Outros tempos, precisava de razões, motivos, motivações para me movimentar. Aprendi, na sabedoria dos apertos de mãos, dos abraços em reuniões, das vozes que soam num misto de alegria e consternação (essa voz eu treino sozinho, durante o banho, mas confesso que ainda não dominei tal técnica), que as palavras "missão", "tática empresarial", "fator de propaganda", e outras expressões que soam parecidas, são ditas nas mesmas frases e pelas mesmas bocas- donas das mãos que apertam com força e alegria - que nos dizem que estamos mais magros, mais jovens, mais alegres. A minha nova filosofia contraria a lógica biológica, social, histórica, mas ao menos diminuí a quantidade de sobrancelhas que se levantavam em minha direção. O novo livro garante minha subsistência e parece fazer a todos extremamente certos e seguros de si, até porque só existe uma ideia, um objetivo: a construção da equipe. Tenho quase certeza de que a equipe é meu porto seguro, e ganhamos todos: eles me ajudam e eu os ajudo.

 O vocabulário desse novo livro, que tenho me esforçado para entender, é limitado, mas cada palavra serve exatamente igual as outras: ocupam um espaço importante, de tempo e de articulação de ideias, sem o que, teríamos que voltar ao tempo de ter que ver as coisas de fato e dizer, absurdo, as coisas como elas são. E mais importante: não é o significado que importa. É o tom e a forma como ela é dita. Um exemplo: "Nossos esforços devem ser no sentido de manter a coesão social e garantir que nossas ideias sejam compreendidas e satisfaçam a todos, mantendo o stablishment e o status quo, dentro da lógica das múltiplas inteligências ". Escrito, não parece grande coisa. Entre lágrimas, ressaltando os pronomes pessoais possessivos(nossos, nossas), entrelaçando as mãos como se significasse a tal união, causa um grande efeito. Gosto desse novo livro. Já tentei fazer o mesmo dizendo para um grande público a frase seguinte e causou grande emoção, lembrando da regra do uso generoso da ideia de coletividade, de objetivos, de usar expressões estrangeiras, de adjetivos : "Nossa pizza de muzzarela com aliche, é prova do nosso esforço e nossa capacidade digestiva excepcionalmente treinada desde o paleolítico".

  Às vezes, sonho que o dia do algo não será a mera repetição do dia anterior, como os olhares insistem em me tranquilizar. Sonho que haverá um grito primordial, vindo do grupo que se esquentava num clichê de lata de ferro, debaixo de uma ponte, e que eles, tal qual os primatas de 2001 de Kubrick, erguerão seus instrumentos e começarão uma onde de violência e destruição, que, como uma gripe, se alastrará. Será a ideia da equipe difundida ao limite. Coerente.E haverá uma trilha sonora distante, soando abafada, debaixo da cama e será eu mesmo, rindo do absurdo que toda a filosofia do mundo ajudou a construir, ajudada com afinco pelos nossos corpos que, de vez em quando, ainda tentavam nos dizer e nos mostrar as coisas que cada vez menos queríamos e podíamos ver.

sábado, agosto 13, 2011

RESPOSTAS

  Dançar tango em Paris.
  Comer ravióli em Lisboa,
  Jogar rosas no Nilo,
  sentar em frente ao Coliseu.

 Por que meus demônios são noturnos?
 Por que a insatisfação esgueira-se no silêncio?
 Por que o pulsar do coração é insistente?
 Por que criamos deuses se somos pó?

 Andar de mãos dadas em público.
 Escrever sonetos alexandrinos.
 Amar com palavras de conforto.
 Amar com gestos de símio.

 Quando será que nada mais será sensação?
 Quando o breu será meu irmão?
 Quando os passos irão para a distância?
 Quando nunca mais haverá verão?

 Ter conta em banco exclusivo.
 Falar idiomas com sorriso.
 Usar os pronomes com exatidão.
 Lembrar de datas particulares.

 Quem enxerga o que eu não sou?
 Quem iniciou a mentira?
 Quem revelou a verdade?
 Quem abriu a boca e se comunicou?

 Calcular os passos com precisão.
 Almoçar com máscara e não sujar de macarrão.
 Escolher nomes para os que virão.
 Ler a mente alheia e responder de prontidão.

 O que justifica a lua?
 O que se faz em nome do infinito?
 O que é a morte?
 O que sou?

 E tudo que ela me pede
 é que eu acaricie suas costas,
 antes de dormir sorrindo.

 E responde todas as perguntas,
 mesmo as que ainda não fiz.

segunda-feira, agosto 01, 2011

Paisagem

    Sentado em uma mesa de bar,
    contando minhas pílulas da felicidade,
    sabendo de antemão,
    que as horas se passam em vão,
    que os risos movidos pelo álcool,
    e as mãos que se entrelaçam,
    logo irão acordar para o dia,
    e para a vida que chamamos de real.

    Saio em direção a lugar nenhum,
    pois aonde vá sempre encontrarei,
    um espelho que possa reconhecer,
    a imagem que criei de mim,
    forjado em mentiras vaidosas,
    e palavras que encontro,
    quando sinto meu ventre rastejar pelo chão.

   Amanhã ou depois,
   e ainda depois,
   e mais um pouco (ou muito, sabe-se lá)
   usarei as palavras que venho treinando,
   como um cão que recebe seu osso após um salto.
  Encontro-as entre o intervalo do sorriso sem sentido,
  e dos cálculos mentais de quanto me renderão.

 Aprendi com as mãos calejadas e os pés em sangue,
 que o que sou não importa.
 O quanto sonhei e o quanto quis que tudo
  fosse feito entre soluços de um coração apaixonado,
  pelo Outro, por algo que fizesse mais sentido,
  do que a propaganda que passa na televisão,
  nesse exato momento.

  Bonitos. Sorridentes. Felizes?
  E o que é a felicidade, afinal?
  Eu, que li e leio páginas amareladas de sons distantes,
  que já rezei tantos nomes,
  e comprei alguns cristais,
  e tentei de todas as formas entender a roda do mundo,
  não saberia responder qual a equivalência entre o que se chama de felicidade,
  e um olhar que honestamente tente me confortar.

  Olho o relógio tentando segurar os ponteiros de forma mental,
  quem sabe? roubar do tempo e do mundo o que resta:
  essa mesa, essas mãos entrelaçadas.
  Mas o ponteiro é como o arauto prometido,
  disfarçado e cantando entre diversas religiões,
  que nunca prometeram arrancar de nós,
  o vício pelas lágrimas alheias,
  e a satisfação em sentir que os outros sçao outros.

  Mas o amanhã é logo ali,
 e entre a dissimulação e a sinceridade,
 sei que agrada a todos a segunda:
 somos vaidosos de sentirmos que
 outros se esforçam para nos enganar,
 já que afinal, não entenderíamos ninguém mesmo,
 se usassem de palavras que significassem a verdade.

 Verdade? enquanto a minha paisagem são meus pés,
  contorcendo-se para cavar a própria cova,
  outros olham para si,
  satisfeitos de saberem que,
  depois de amanhã,
  o que restará é o nada e que somos todos
  seu pai, sua mãe e seu filho.

domingo, julho 24, 2011

O mesmo

            Ao nascer do sol, ouviu-se os gritos das crianças que iam à escola: “Tem uma mulher morta no matagal”. Bastou a palavra “morta” gritada menos com terror do que excitação, para colocar todo o bairro de pé.  Aos solavancos, almas que se contorciam penosamente em busca de mais alguns segundos no calor e na segurança do lar, puseram-se de pé, e correram para fora. Não que fosse alguma novidade a morte, ou a morte ali próxima, mas era um ritual religiosamente cumprido por todos, sem qualquer raciocínio.

            O vigia, que estava abandonando seu posto, mudou de direção: ia se atrasar, mas tinha que saber do que se tratava. As mesas de café não foram postas para que se conseguisse um lugar privilegiado, mais próximo possível do corpo, mas não tanto que se pudesse tocá-lo. Barbas deixaram de ser feitas e alguns já visualizavam duas reações: o atraso no trabalho incitaria uma bronca, mas o relato do fato transformaria isso em algo menor.

            As crianças corriam e jogavam suas pastas e cadernos para o alto e ninguém se importava. Era até bonito: o sol erguia-se num céu limpo, azul, azulzinho, sem nenhuma nuvem e pincelava com mãos fortes de tom laranja largas faixas cor-de-ouro. O cheiro do sereno secando nas folhas, deixava um leve aroma de hortelã e mamona. As vozes eram baixas, respeitosas, ininterruptas no entanto. Soavam à romaria, com seus tons lamentosos e profundos.

            O corpo era de uma jovem, devia ter no máximo 16 anos: branquinha, pele bem lisinha, cabelos lisos e claros, quase beirando o branco. Todos notaram como seus cílios eram longos e bem cuidados. Estava com um vestido bonito, escuro e despida de sua calcinha, que borboletava pendurada numa árvore. Parecia um anjo, mas em torno de seu pescoço notava-se marcas roxas de mãos e seus lábios não tinham cor alguma. Também estava com marcas de mordidas na orelha. De resto, era muito bonita.

            Os que estavam na frente, tinham que firmar os pés para não serem empurrados contra o corpo. Ficavam alguns segundos, murmuravam alguma coisa e davam lugar para os que vinham atrás. Estranho balé, cercado pelas crianças que decidiram que era uma boa hora para uma disputa de bola. E o dia se alongou. Passou uma hora, duas horas e vai-e-vem, alguns já tinham se aproximado três vezes. Quando iam para o fundo da multidão, enchiam-se de voz brava e diziam “que mundão, matar dessa maneira”. Outros reclamavam que era sempre ali que apareciam os corpos e ninguém tomava providência.

            Depois, a novidade foi passando e alguém notou que a polícia ainda não tinha chegado. Já era quase meio-dia, mais de quatro horas depois que o corpo fora encontrado. Começaram alguns a apostar quanto tempo demoraria para que as autoridades chegassem. Da última vez, chegaram antes da uma da tarde, mas alguém se lembrou da vez que duas crianças mortas passaram quase dois dias ali, e tiveram que ficar espantando urubus. Ninguém saia dali: era uma boa desculpa, infalível, para justificar o atraso, como já dito. Tinham que ouvir o relatório da polícia, dada às pressas, entre alguns minutos de agacha-levanta em torno do corpo, geralmente o mesmo: assassinato. Mas ninguém arredava e aproveitavam para colocar as conversas em dia, reclamar atrasados, convidar para batizados, prometer de novo o que nunca se cumpria. As vozes iam se erguendo, misturadas a disputa ferrenha no jogo ao lado, e ao dia já a todo vapor em torno.

            Sempre o mesmo.

            E o mesmo também quando a velha, que ninguém nunca perguntou o nome e só o que sabiam era mais enredo de janela do que fato, trouxe o velho lençol branco bordado com lantejolas prateadas e pôs sobre o corpo. Daí, todos se lembraram de abaixar a cabeça, rezar e mandar aos diabos as crianças que adoravam essa cena em particular e cantavam em sintonia: “Ema, ema, ema, cada um com seus problemas”.

domingo, julho 17, 2011

Desde ( )

            Ela levantou-se do tatame, com a barriga doendo e todos os ossos do corpo pedindo que parasse, mas algo, uma imagem, palavras de carinho, uma frase de pára-choque de caminhão que parecia uma mensagem divina, trinta anos de luta contra a opressão masculina e patriarcalista, fizeram-na levantar e voltar para a posição de luta no tatame. Não seria derrotada por um outro homem qualquer, alguém que não tinha seu nível intelectual, nem sua criação e nem um sobrenome impronunciável no sistema fonético local.
            Desde que terminara seu namoro, construído com viagens a lugares paradisíacos, aulas de pompoarismo, roupas exóticas, almoços em família, revistas de decoração de ambientes campestres, planos e cronograma feito meticulosamente em planilha Excell, sentira-se roubada de um mundo que seria seu por direito legal e econômico.
            Afinal, era loira, tinha todos os dentes, fizera uma operação corretiva no nariz, fazia exercícios com regularidade, estava doutorando-se em Letras, sabia discutir com certa profundidade noções de mito, construção de verossimilhança e teoria da recepção, além de contar ótimas piadas. Também conhecia vinhos californianos e sabia distinguir Monet e Manet.  
            Colocou os pés em posição no tatame e respirou fundo, mentalizando as opções que tinha de golpe e dizendo para si mesma que era geneticamente, instruidamente, socialmente, e estava na moda, muito superior àquele homem alto, cheiro forte, mãos calejadas e pele escura. Golpearam-se.

            Á noite, gritou o nome do seu oponente, entre gemidos que mais pareciam o ganir de um cachorro e entendeu finalmente o que Nietzsche dizia sobre a dança, o que Darwin dizia sobre o gene, e , principalmente, porque sentia-se sempre uma peça de quebra-cabeça sem jogo para montar. 

sexta-feira, julho 08, 2011

História sem nexo

  A noite era por demais silenciosa para que houvesse gritos. Mas haveria lágrimas. Haveria palavras bem construídas, emplastros em forma de abraços, desejos sinceros de que a estrada estivesse sem perigos. Mas são as lágrimas que contam a história:

_ Não sirvo para ti.
_ Ninguém serve.
_ Sirvo ainda menos pois sei que sirvo somente para mim, e mal dou conta do que sou.
_ Nunca te pedi.
_ Todo o teu ser: teus olhos, teus suspiros, teu sorriso. Eles me pediram. Não posso te dar.
_ Então, adeus.

 Mas a noite era mais real do que as palavras podem recriar e as lágrimas também. Elas pedem a realidade do chão, a rudeza da dor e não um esteticismo cruel:

_ Acho que não vai rolar mais...
_ O que aconteceu?
_ Sei lá, nem eu sei direito..mas não tá rolando...
_ O que você quer de mim?
_ Nada, só quero que você seja feliz.
_ Então, adeus.

 Não há história sem um nó, nem relato sem emoção. Mas há ainda a história das lágrimas, que aqui serão contadas entre outras, pintadas de palavras que fingem que compreendem mas se assustam quando se pronunciam:

_ Não chore...eu queria que as coisas fossem diferentes. Que eu fosse diferente. Que o mundo fosse diferente. Mas o que sou só te levará, sempre, para essa mesma fala que dirás no fim...
_ Qual fala?
_ Que sou só um reflexo pálido e fugidio de possibilidades que escureço com minhas próprias mãos.
_ Nunca falaria isso...só não entendo o que aconteceu.
_ Aconteceu o que acontece todos os dias e continuará acontecendo sempre: queremos saber que seremos velados por alguém que viu nosso rosto sem máscaras.
_ Eu vi teu rosto.
_ Você viu o que eu quis que você visse: alguém melhor, um projeto que nunca levaria à cabo, uma intenção sincera com ausência de vontade verdadeira.
_ Então é assim? Adeus?
_ É...
_ Nem vai mentir pra mim? Dizer algo pra aliviar essa dor?
_ Um dia você vai entender...eu não entendo, só reproduzo algo que os milênios insistem em gravar.
(Lágrimas. Verdadeiras. De alguma forma divinas. Irmãs da nossa patética força divina em acreditar em algo além de nós)
_ Preciso ir...
_ Não vá...
_ Eu vou...

....

  O silêncio diz: és só um reflexo pálido e fugidio de possibilidades que escureces com tuas próprias mãos.

 O sol chegando diz: mas nunca saberás, como nunca saberemos.

terça-feira, julho 05, 2011

Apanhadores no campo das palavras

  O olhar precedeu o toque. O toque precedeu o som. O som precedeu a palavra. Esta, libertou-se e percorreu os séculos. Voou de uma noite estrelada e fria, em que a aproximação garantiria a sobrevivência, ou como agradecimento de alguma caçada bem-sucedida, em que o alimento compartilhado ganhava outra imagem. Nunca se saberá. Libertou-se e foi, pelos séculos, revestir-se de outros sons e outros significados, tentando ser sempre o mesmo.

 Foi proferido por todos: religiosos, combatentes, mães, filhos, déspotas, assassinos, heróis. Cumpriu sua jornada, ecoando nos salões de palácios, rezada pelas abóbodas de igrejas, protegeu as paredes de casebres, pôs pão na mesa dos tristes. Universal, sua semente múltipla dizia o mesmo dizendo de formas distintas. Individual, a cada vez era renovada pelos lábios que a proferiam.

 Viajou de boca-em-boca, como alento diário. Foi cantada, como supremo tema. Escrita, como última promessa. Fotografada, como ato inesperado. Filmada, como boneca vestida. E foi se tornando comum. Encontrada em qualquer parte, em qualquer vocabulário. Perdeu-se, no seu uso, o uso original. Significa muito. Significa nada.

 É o resgate da sua origem que traduz-se o viver em dois: é encontrar, entre milhares de iguais, aquela. A mesma que significou sobrevivência e agradecimento. Entre milhões de imagens, a única que interessa: o olhar. Entre milhões de sons, entre milhões de toques, o mesmo que precedeu a origem. Buscamos com mãos ávidas, perdidos como quem apanha num campo imenso e infindável, palavras sem conteúdo. Buscamos, em dois, pois talvez seja só duas mãos que possam descobri-la, a palavra amor. E encontrá-la será despi-la de toda e qualquer maquiagem que os séculos, os espaços, os usos, os meios, insistem em ocultá-la de sua verdadeira semente: um olhar, um toque, um som.

sexta-feira, maio 20, 2011

Poesia

   Súbito, ouviu a música. Alta, intempestiva e sanguínea. Tentou, por alguns segundos, emudecê-la, com a força da razão. Fixou os olhos em imagens degradantes de si. Fixou os olhos nos olhos dos outros. A música reverberou com mais força, indiferente a sua vontade moldada na cartilha. Tal qual uma marionete, seu corpo começou a se mover.

Primeiro a cabeça. Fez movimentos violentos, quase deslocando o pescoço. Seus olhos se revoltavam em órbitas desestruturantes. Sua boca murmurava o som primordial. Cada vez mais rápido, cada vez mais intenso.
Logo seu tronco se contorcia em sibilantes serpentinas terríveis. Não parecia uma dança propriamente dita; antes, um esconjuro do espírito sedento de livrar-se da matéria.

Os braços moveram-se como socos no ar, abruptos e reptilícios. Desconexos, ouvia-se os ossos estralando a cada golfada de energia. Os pés, resistiam, no entanto. Fixos, enamorados do concreto, mantinham o último vestígio da história dos bons hábitos. Como raízes batizadas ou garras pedagogicamente construídas, agarravam-se ao chão, desesperadamente.

A música agora beirava o som da caverna dos terrores. Gutural, profunda e hipnotizante. Ecoava do fundo entre murmúrios de sangue aquecido e veludas peles desnudas. Os pés começaram a ceder. Primeiramente, de forma ainda a manter-se em contato com o real. Os calcanhares giravam, sem deixar o solo. Marcando um ritmo, movia-se em cadências mais e mais contundentes. Finalmente, um se desprendeu. O correto seria dizer: revoltou-se. Martelou com força animal o tablado, causando uma sonoridade assustadora. Era como se quisesse vencer a gravidade, pois do martelar se passou aos saltos. Saltos precedidos já de gritos, acompanhados de urros e finalizados com a expectativa do próximo. O som do corpo no ar era o som do medo vencido; da vingança contra o meio; do romper de correntes soldadas na era imemorial, por mãos delicadas, puras e descansadas; correntes que se fiscalizava e se reforçava com o ouro que o olhar do sim abrilhantava.

.....

Alguns alunos assustados correram para chamar alguém, assim que o professor começou a se mover de forma estranha. Parecia um ataque epilético. À porta, outros professores, alunos de outras salas, bedéis, olhavam aos risos disfarçados aquele surto súbito.

.....

Mas isso se conta como quem conta uma lenda. Uns dizem que o professor era drogado. Outros, que ele estava estressado. Alguns juram que viram também alguns alunos dançando, como se ouvissem a mesma música. Mas quem conta com esse final, termina se benzendo dizendo cruz-credo entre os sinais-da-cruz.

terça-feira, maio 17, 2011

Porque me é tudo novo e insuspeito
  não tenho ainda a voz que seja a justa
  medida do mundo, de dores feito,
  mas hoje tão estranho que assusta!

  A pedra e a espada tão conhecidas,
  quedadas em algum canto do lar,
  abrem espaço para novas feridas,
  ou para um caminho ainda no ar.

 Se sei algo do mundo é a queda,
 o escuro e o conforto da solidão,
 me surpreende o que não é perda.

 Mas falo agora com o som do trovão,
 da chuva que esteve sempre em espera,
 pingando teu nome em novo verão.

sexta-feira, maio 06, 2011

Hello, dark, my old friend...

  Olhar-me ao espelho não é uma possibilidade de auto-ajuda ou auto-crítica. É perceber que, no final, será essa a única companhia que tive pela atribulada vida. Todos os rostos que, por algum momento dividiram esse espaço, foram como a pedra drummoniana, a me distrair de que, a solidão não é um estado: é uma essência.

  Inventamos deuses, cânticos, heróis, mitos, amigos, a linguagem, a infâmia chamada alma, a desculpa chamada lógos, não para entendermos o universo. Inventamos para cobrirmos, de tempos em tempos, a imagem que reflete a única condição exata e inexorável: o fato do espelho não mentir; e a verdade chamada tempo.

 Inventamos o relógio para aprisioná-lo em outra tentativa pueril e impotente de controlar esse espírito que insistimos em querer enganar. Mas, é um espelho: enganamos a nós mesmos, como quem abre uma janela e pretende que não é a mesma vista, nem a mesma rua.

 Por isso, leio. Ali, encontro um sedativo contra o vício do espelho, o medo do espelho, a vida que só existe, de verdade, defronte ao espelho. O resto são socos no ar, fingindo ser bater de asas...

sábado, abril 23, 2011

Brilho fugaz no canto de um espelho

  Se da vitrola, espera-se o abraço conhecido,
  se do bocejo, sabe-se ainda vivo,
  se na pele a dor do outro ainda existe,
  porque não se olha mais no espelho?

  Ainda há muitas lágrimas,
  sem autoria e sem fiador,
  esperando que as vistam de vistas menos
  invisíveis, então barrocas.

  Deve haver, agora mesmo,
  um riso sórdido elevando-se
  entre os passos que caminham em círculos,
  ali, no formigueiro.

 Uma ou outra imagem que justifique,
 o cinismo, a desesperança, o desapego.
 Elas se formam aos milhares,
 em cada gesto bem intencionado de vida em transe.

 Mas ao se olhar no espelho,
ele se transforma, por hora,
em janela de um céu, que
mesmo estilhaçado,
descobre um raio de sol
e cega os olhos para
os outros,
que afinal,
nunca estiveram aqui,
enfrentando o velho olhar.

terça-feira, abril 12, 2011

Ego hic nunc

A porta, sempre a mesma.
A maçaneta, a mesma marca.
A mesa, inalterada.
Nas cadeiras, roupas usadas.
            Sons de bule no vizinho.

O sofá, couro arrebentado.
A poltrona, sujas almofadas.
A mesinha, prato machado.
Nos bibelôs, mãos inalteradas.
             Talheres e feijão, no andar de cima.

A vitrola, o mesmo disco.
A TV, o mesmo canal.
O livro, a mesma página.
No porta-retrato, velhas expressões.
              Um boa-noite, entre bocejos.

O cinzeiro, o mesmo cigarro.
O copo, o mesmo vinho.
O olhar, no mesmo vazio.
No espelho, silêncio.

              O verbo, perdura num céu nublado.

sábado, março 26, 2011

saturno me espreita...

   Deve ser meu riso. Deve ser alguma maldição das boas, das antigas. Deve ser o fato de que, num estranho equilíbrio, não só recebemos não o amor que fazemos, mas sim a desconfiança, o ódio, a indiferença. Sei de gente que sente-se culpada por espirrar em público. Em público, sempre me mostro misantropo, misógino, polêmico. Por dentro, sei que minha aposta sempre foi na rapidez que a vida nos surpreende e nos re-surpreende. Pena, meu caro Heródoto, que pulamos sim duas vezes na mesma água, e não de um rio, mas de um lago feito com o arrastar lento de nossos pés em torno de nós mesmos...

 Deve ser algum tipo de ironia que sempre dói, mas também sempre cura. Devem ser meus olhos, que nunca olham para nada em especial, e olham para tudo ao mesmo tempo. E eu, que me achava menos sujo, menos carregado de pedras nos bolsos, tenho um grande lago a me prender, numa história que de tão cíclica, tornou-se  mito: o mito de que, afinal, somos não a tal alma andrôgena platônica, a chorar pelo outro. Somos uma ideia, um reflexo no próprio lago, e  narcisos medrosos de erguer os olhos, enxergamos somente o que podemos destruir: nós mesmos.

 Nesse espaço, criamos o diálogo sem voz, a comunicação feita pedra, o devaneio da pecepção. Não se ouve ninguém e ninguém se ouve, pois nunca falamos de fato com o outro e o outro nunca fala conosco. Monadas, malditas monadas, somos apenas matéria isolada de tudo e de todos, cismando e sonhando que vivemos, que podemos, que somos, quando, no final, nem a palavra nos restaura, nem o amor que nunca nos é dado de fato, nos inflama.

 Tudo isso para dizer: o mito que criei devora-me. Meu próprio saturno é acreditar que há algo além do óbvio, do lago, da solidão...
 

domingo, março 20, 2011

Dança

  _Não sei dançar...
  _ Nem eu...
  _Mas dance comigo?
  _Você não disse que não sabe?
  _Não sei...mas quero

  Dançaram. Totalmente fora do ritmo da música que não saberiam posteriormente dizer qual era a música que tocava fora deles. Dentro, poderia ser Debussy, Nina Simone e até nenhuma, só o som de dois corações que, sem combinarem, entraram numa estranha sincronia, causando em seus olhos uma rara sinfonia.

  Em volta, todos entenderam mas não puderam acompanhar o ritmo.

domingo, março 13, 2011

Diálogo

  Esperou que ela dormisse para se levantar. Cuidadosamente, tirou seus braços debaixo, dela, que se aninhava como um ser indefeso. E era. Naquele momento, ela estava indefesa. De olhos fechados, cabelos loiros caindo pelos ombros, expressão suave, ela era apenas um corpo inerte. Sem ruídos e agitações, ele conseguiu manejar sua fuga até a cadeira mais próxima. Acendeu um cigarro e ficou olhando, entre o admirado e enternecido pelo olho bom e entre o cético e o sarcástico pelo olho ruim. "Dorme como um anjo". "Espere que acorde e você verá que ao fim, sempre há uma fresta para escapar".

 Entre uma baforada e outra: " Poderia ser feliz aqui, ao lado dela. Há paz, afinal..." "Paz é para os bovinos. E a única real é a conquistada, não a sorteada..." Ela mexeu-se um pouco e ele soltou uma baforada bem densa para o alto: " Ela é muito doce e esforça-se para entender-me. raro. Muito rara. " "Espere e verá que logo ela entenderá o quanto você se sujeitou à exclusão e confortou-se." Levantou-se e ligou baixinho o rádio. Tocava "No Surprise" do Radiohead. Sorriu com a coincidência.

 "Sorri mais nesses dias do que em anos. Senti-me novamente com energia para conseguir sair da frente do computador". "Empolgação. Há-de passar, como tudo". Decidiu levantar-se e olhar pela janela. Céu coberto de nuvens escuras, vozes distantes aprontando o cotidiano, um pássaro passou voando sem alterar a rota. Pensou consigo mesmo sobre as rotas da vida e suas curvas. Ela respirou um pouco mais alto.

 Olhou, sentindo-se um assassino. Olhou em volta e viu a porta, a chave e a maçaneta. Seria só alguns passos  e estaria de volta para seu mundo, sua fortaleza, sua cova tão profundamente cavada. Ficou alguns segundos encarando-a. Ela sorriu. Devia estar sonhando. Olhou de volta para a porta. Sentou-se e ficou encarando-a. Sentindo a música tocar, o leve ar do espaço compartilhado se encher de uma expectativa, o relógio alongar-se propositalmente.

 Colocou as mãos no rosto, tentando tampá-lo. No movimento, viu: foi ele que tinha levado as mãos ao rosto. Foi seu movimento, sua escolha, sua energia. Fez novamente. Levantou os dois braços, alternadamente. Mexeu os dedos. Começou a mover os pés e, sentado na cama, a balançá-los, como fazia quando era criança e sentava-se no banco do balanço. Sentiu-se encher de uma força que parecia perdida. Ela acordou com tanta movimentação, e numa voz angelical e sedosa, perguntou-lhe: "Você está bem?"

 Ele abraçou-a. Deixou que uma lágrima escorrendo até um sorriso fosse sua resposta.

terça-feira, março 08, 2011

Promessas

Que mão poderia desenhar, tal geometria? 
Que abre num rompimento o susto do mundo, 
de uma forma que já não mais existia? 


Inventa-nos, novamente,
 o céu, a lua, as estrelas, 
pois era isso que, em criança, 
nos sonhos, eu via!


Que olhos me resgatam dessa agonia?
Que surge sem surpresa do sono profundo,
sem convite, revelando o que não se via?


Ensina-nos, caridosamente,
o escudo, a mortalha, as velas, 
pois é isso que, sem esperança,
ainda me protegia!


E ao deixar terra arrasada,
deixa uma lágrima de garantia,
de que no fim da estrada,
será começo de dia!

segunda-feira, março 07, 2011

Botão de rosa branco

  Ali, distante e melancolicamente bela, ela estava. Olhando de si para si, fugindo do olhar dos outros, parecia deslocada e assustada. Incomum. Sem máscaras, seus olhos pareciam dois grandes botões de rosas, prontos para assumir sua fragilidade e sua brevidade naquele deserto. Brancos. Botões brancos. Puros e intocados pois as mãos dos jardineiros sempre lhe foram estranhas.

 Súbito, seus olhos se cruzam com os meus. Indiscretos, meus olhos faziam sombra a sua clareza. Ela sentiu o golpe e, num ímpeto, apertou com tanta força o copo que segurava, que este quebrou e a cortou. O sangue encheu um lenço e não era mais dela. Era o meu. Não-convidado, invadi com minha aspereza e sede seu espaço. Ela começou a correr, em direção ao banheiro. Fui atrás, pra me desculpar.

 Interrompi sua fuga no meio. Ela virou-se, os botões de rosas me feriram, me lembraram da minha condição humana, previsívelmente desnecessária. Queria dizer-lhe que a entendia, mas não entedia de fato. Que era como ela, mas meus olhos não a enganariam. Que poderia mudar, mas nem as palavras, nem o sentido, se construiriam defronte aos meus olhos cansados e tristes. Beijei-a, roubando o que restava. Fui-me, como o ladrão envergonhado.

 Em casa, encarei por longas horas o teto, sem piscar. Fechando os olhos, via como se tivesse encarado dois sóis, o reflexo daqueles botões em minhas retinas. E senti-me ainda mais triste por ser o que sou.

Conversas na madrugada

   Não era para ser. Nem intentava. Começou com um sussurro vindo do outro lado da parede. Encostou o ouvido e alguém lhe perguntava se estava dormindo. Ficou sem saber o que responder. Seria com ele? Escutou novamente. Ninguém respondeu do outro lado. Era uma voz, feminina e arranhada, como se muita vida tivesse passado por aquelas amígdalas e cobrado seu preço. Novamente. Decidiu responder, baixinho. Não, não estava. Tinha dificuldades. A voz aumentou dois tons: "Eu também". Nada mais se disse e o silêncio se fez, pesado como uma mortalha.

 Na outra noite, ouviu novamente. Encostou o ouvido. A mesma pergunta. Respondeu, um pouco mais alto do que na noite anterior. A resposta foi a mesma, no mesmo tom, com o acréscimo: " Odeio isso." Ele também odiava e não sabia a razão. Estava sempre cansado, com olheiras enormes e sempre com uma barba mal-feita. Diziam-lhe "o boêmio" e ele nunca quis corrigir isso. Sentia-se cansado de ter que construir alguma imagem aos outros e só sorria e concordava.

 Assim, noite após noite, palavra após palavra, foram aumentando a conversa. De poucas, passaram para horas. E uma curiosidade inexistente, surgiu. Como seria a dona daquela voz? Gostava do riso dela e imaginava-a levantando a cabeça para rir, e, quem sabe?, um longo cabelo ainda com vida, balançando no escuro. Algumas noites acariciou a parede, coisa rara em alguém em que as noites eram apenas intervalos sombrios de dias mecanizados. Algumas noites disse boa noite com carinho, mesmo sendo já manhã.

 Os dias agora demoravam mais para passar, pois queria logo deitar-se e iniciar aquela estranha sinfonia noturna, de murmúrios, risos abafados e confissões. Deram para fazer confissões. Ficou sabendo da vida dela, das dificuldades, dos resquícios de sonhos. Ele contou da sua, sem romantizar, de forma bruta e severa, como nunca. Nunca houve nenhum tipo de entrevero, de proibição ou de desprezo. Aquela parede, de concreto armado e pintada de cinza, era um quadro impressionista de danças, de rosas e de vidas que pareciam tiradas de outros tempos.

 Um dia, entrando no prédio, ouviu aquela voz cumprimentando uma vizinha. Sentiu seu coração disparar. Sentiu um frio no estômago, como se fosse faltar-lhe todo o ar. Subiu as escadas, silenciosamente, quase rastejando, para não ser notado. No outro lance, cruzou com ela. Não lhe levantou os olhos e escondeu o rosto. Ainda de relance a viu, descendo. Bela, nova e elegante. Muito mais bonita do que imaginara. Entrou em casa sentindo palpitações e tremores que nunca tinha sentido antes. Deitou-se debaixo da cama, segurando um travesseiro entre as pernas.

 De noite, quando ouviu o sussurro, não respondeu e mudou-se na semana seguinte, para nunca mais.

sábado, março 05, 2011

Os dias cobram seu preço

  Tentou segurar o ar o máximo possível. Contou mentalmente quanto tempo resistiria, sem respirar, sem necessitar do mundo. Em menos de um minuto, desistiu. Deitou-se, olhando o teto do quarto, manchado pela fumaça constante de cigarro. Brincou por algum tempo de tentar imaginar alguma figura naquela mancha. Mas seus olhos cansaram-se e adormeceu.

 Não houve nenhum sonho. Acordou como acordava todos os dias de uma vida que poderia ser contabilizada em grupos. Grupo de sobreviver: 80% dos dias. Grupo de agradar aos outros ou não desagradar a ninguém: 18%. Grupo de fugir: 1%. Grupo de sorrir: 1%. Fazendo essa conta mental, fez força para conseguir sorrir e manter-se acima, ao menos, da fuga. Não conseguiu e já era tempo de sobreviver e viver aos outros.

 No caminho do trabalho, reparou que os dias costumavam ser menos cinza, mas não tinha certeza se isso era uma lembrança ou algum filme que vira recentemente. Também teve a impressão de que, em algum lugar da memória, alguns sentimentos costumavam aquecer o peito e acelerar o coração. Acendeu um cigarro e pensou em alguma coisa que poderia ter causado tal sensação. Na curva da avenida, bem no alto, um outdoor mostrava  um belo hamburger. Não conseguiu sorrir.

 Na volta, novamente a ideia de que o mundo andava num ritmo mais lento, menos ruidoso e mais compassado. Os sons das buzinas e dos escapamentos davam lugar a algum tipo de melodia, que seus ossos insistiam em vibrar. As luzes dos freios e dos semáforos inexistiam em algum cheiro de flor que juraria ainda sentir. Colocou a mão no peito e sentiu, assustado, que o coração se movimentava em saltos descompassados. Provavelmente, seria um ataque cardíaco e todas as lembranças eram de algum lugar, de algum tempo, que a noite escondeu em seus braços. A grande noite, invenção de nossos medos, agora não mais conseguia esconder aquelas sensações.

 Os motoristas em volta do carro batido e do cadáver, apontavam para a expressão infantil do sorriso num rosto calmo, como quem aponta para si mesmo.

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Anti-pequeno príncipe

  Acordava todas as manhãs num sobressalto. Sempre tinha o mesmo sonho: uma mulher, sem imagem definitiva, quase uma sombra difusa de luz, estendia-lhe a mão e mostrava o seu coração reluzente e vibrante. Ele tentava arrancar dela e enfiar de novo em seu peito, mas ela caminhava como uma névoa, porém mais rápido do que ele conseguia correr. Todas as manhãs levantava-se cansado.

 Quando acordava, em um pulo, buscava dentro de si qualquer resquício de sentimentos. Como um jardineiro cuidadoso, perscrustava silenciosamente, atentamente, cada possibilidade de sentimento. Temia particularmente o amor. Sabia ser esse uma praga, que quando fincava raízes, estendia-as por toda a extensão de sua alma, fincando seus longos dedos em cada suspiro. Testava cenas e imagens. Qualquer alteração, pisava as imagens com seus pés pesados aristotelicamente treinados. Isso, e as diversas decepções que foram minando a própria terra onde poderia florescer o amor. Estava gasta, seca, já velha demais para tal mal. Mas não descuidava.

 Antes de dormir, fazia uma segunda faxina. Qualquer sorriso, qualquer sugestão de afeto, transformava em mera briga pela espécie. Mera convenção social. Mera necessidade humana. Não deixava que se intrometesse em seu ser nenhum sonho, nenhuma cena de carinho. Cuidadoso, revolvia a terra e procurava qualquer coisa que pudesse ali florescer. Ficava satisfeito quando só encontrava cinzas e pedras. Ia dormir tranquilo, resmungando consigo palavras de incentivo.

 Entretanto, o amor tem mil caras e mil disfarces: vem num andar, num encontrão, num trocar de olhar, camuflado em palavras disfarçadas de acaso. Esse veio disfarçado de pedra. Como as pedras, quedou-se silencioso, sutil. Buscou as sombras, fugiu do jardineiro, mostrou-se inofensivo. Até que floriu, abrindo em pétalas de seda. Naquela amanhã, ele sorriu pois não tinha sonhado com a figura enigmática. Segundos depois, sentiu em seu peito o veneno já atuando, espelhando-se pelas veias. Abriu a janela, pela primeira vez em anos. Olhou o céu e reparou que era azul.

 Baixou os olhos, baixou a enxada, ajoelhou-se defronte aquela rosa. Chorou, pois sabia que era fraco.Chorou, pois a rosa já tinha sede.

sábado, fevereiro 19, 2011

Alegorizar-se

 O que penso de mim tem o crivo da minha fraqueza. Não mais me serve olhar ao espelho e ter o amigo que impede o discurso inútil. O discurso que, ao fim, já sabe-se elíptico, é só uma copo de uísque e baforadas satisfeitas de si. Inúteis, cancerosas. O jogo de fingir-se Outro nunca funciona pois a biologia do gene que ama o gene que ama o gene só para continuar sendo gene, me impede de levar às últimas conseqüências as manhãs sem ar, sem som e sem luz.

 O Outro nos lembra daquilo que não somos e do que não queremos ser, mas também nos distrai de nós mesmos. Minotauro lúdico, nos labirintos que construímos sem qualquer possibilidade de volta, o Outro nos seduz com o discurso do olhar para fora. Assim, nessa trama que construímos dentro e fora, a confusão de achar que nossa fraqueza, nossa indisposição de ir-se, nossa carne amolecida, serão curadas, transforma-se em verbo profano fazendo-se sagrado.

  Alegorizar o simples é outra forma de fingir-se dentro quando estamos mesmo é fazendo sombra-fora: gritamos ao largo, chutamos uma porta, batemos a palma na mesa, percorremos o corpo de uma mulher; exercitamos, enfim, o exercício de aqui-agora estar-se. Alegorizamos, construímos camadas e camadas de palavras e sons para distrair, tal qual o minotauro, aquele outro que tem de fato o conhecimento profundo de quem somos: nada mais do que a palmada estalada na madeira; o grito que se perde no eco do vazio; o olhar que embebe-se de corpo.

 

 

terça-feira, fevereiro 15, 2011

Retinas tristes

    2011 começou irmanado com minha alma: lento, nublado e com cheiro de desnecessário misturado com naftalina. Também alguns pequenos dramas, para variar envolvendo pessoas que nunca escutam quando dizemos que ninguém deveria se apegar a ninguém, e que se há um projeto em minha vida, é tornar-me ou um robô ou um bêbado. Ou um robô-bêbado. E os olhares, que estavam quase esquecidos, à fórceps emocional, de meus pais.
   Algumas vezes, entre um riso de fato sincero, vejo nos lábios de meu pai um sentimento de culpa que me machuca mais do que se fosse puro ódio. Minha mãe já desistira de mim bem antes de eu sair de casa, o que já faz um bom tempo. Os comentários dela, aos berros, com aquela alma insuspeitamente italiana ou de quem está ficando surdo, sempre me divertiram. Ela parece compreender que a concepção de mundo dela e o meu são tão divergentes que não mais se incomodam.
  A culpa de meu pai vive num silêncio respeitoso, mas às vezes, principalmente quando se tira a poeira da prataria e se assa um pernil, o silêncio torna-se um fantasma entre nós, cuidando de construir um muro de ausências. Nosso abraço é quase precedido de pronomes de tratamento arcaicos: "Vossa Mercê está bem de saúde?" Construiu-se um buraco invisível que nos traga, irremediavelmente, esperando apenas que a definitiva ausência liberte dali um monstro.
 Feito de sonhos de infância, de roupas brancas e títulos. De respeitabilidade perante os outros. Ele acha que eu seria mais feliz assim e se culpa de não ter me provido disso. Mal sabe que ele me proveu de seus olhos tristes quando mentíamos ou aprontávamos alguma. Poucas vezes bradou. Sempre abaixou os olhos. E me castigou na alma, sem o querer.

............................

   A primeira resolução foi simples: em algum momento, dizer como seu exemplo me foi melhor do que qualquer outro gesto. Me fez uma pessoa socialmente respeitável, responsável e aparentemente bem-resolvida. Até irei sorrir. Tenho medo do buraco vencer.

  A segunda resolução também: dizer, em algum momento, para minha mãe, que ela sempre me divertiu, o que é mais do que quase todas as pessoas que passaram pela minha vida. E ninguém faz feijão como ela. E que eu lembro de um carrinho que ela comprou, e quase quebrou na minha cabeça, quando eu, criança, empaquei aos choros defronte a uma loja, longe de casa. Vou dizer que lembro só do carrinho e ocultar que lembro de sua raiva.

 A terceira nem tanto: minha suposta auto-suficiência irá incluir o sexo oposto, no sentido literal. Não tem compensado o esforço. Ou seja, rumo ao projeto robô. ou bêbado.

........................................................................................................

  Sinto minha fraqueza ao saber que não cumprirei nenhuma dessas resoluções e viverei nessa inércia que me atrai como uma sereia sedutora e infalível, rumo às rochas, vento em popa.