terça-feira, dezembro 21, 2010

De repente, sincronizadamente, eles ouvem: tic-tac, tic-tac. Também começam a sentir o cheiro do hálito amanhecido, uma mistura de vinho e pão mofado. Mas o pior é quando os olhares se cruzam. Quase estranhos, ambos se recolhem e se encolhem. Há um longo momento antes que um deles sorria, amareladamente e diga algo: "É, né". O outro, tirando a remela dos olhos completa: "Pois, é". Será a última vez que estarão próximos de uma sintonia. Ela se vira, assustada, respirando com cuidado, lentamente: "Quem é esse?" Onde está aquele homem de sorriso confiante, de cheiro de homem de verdade, de mãos fortes? Vira-se novamente a tempo de vê-lo andando para o banheiro, coçando a bunda.

Ele entra no banheiro, respirando alto e fundo: "Caralho, o que eu farei agora?". Tentou se lembrar das promessas feitas. Mas pensou que promessas de alcova tem valor limitado, temporário. Há, na verdade, um acordo de cavalheiros sobre isso: se diz o que precisa se dizer antes de começar os xingamentos mais picantes...Convenção. Ela haveria de entender e até se sentir bem, sabendo que ele se lembrara das palavras certas...

Ela se veste, correndo, culpada pela nudez. Sente um frio insuspeito, um tremor que lhe percorre o corpo: "Esse desgraçado usou camisinha?" Percorre as mãos e os olhos debaixo da cama. Lá está. Suspira, quase vitoriosa. Tenta se lembrar dos olhares que fez. Xingou-se, intimamente, pelas palavras submissas, pelo olhar de cordeiro indo ao abate, mas ele deveria saber que era um jogo. Todas fazem caras e bocas, para ajudar o desempenho do parceiro e também porque é picante...Ele iria se lembrar e até empinar o peito, imaginando que a tinha feito gemer como um trem descarrilhado.

Antes de sair do banheiro, ele pensa no que vai dizer: "Gostei de você, podemos marcar uma outra vez...", mas parecia-lhe que estava marcando para ir a um jogo de futebol ou escolher meias para o dia dos pais. Decidiu não dizer nada, só acompanharia o que ela dissesse.

Antes dele sair, ela seleciona as palavras com carinho: "Quando você quiser sair, me manda um sms". Achou meio vulgar, parecia-lhe que era uma garota de programa ou alguma apaixonada. Ele era o homem, esperaria o que ele dissesse e concordaria.

Quando ele voltou para a cama, deitou-se ao lado dela e ficaram alguns minutos só olhando o teto. Sentiu-se desconfortado, imaginou que deveria tomar uma atitude, o que era a sensação dela e também seu pensamento. O desconforto aumentava a cada segundo, o ar do quarto parecia morto; pela janela entrava um rasgo de sol intruso. As lembranças de tantas conversas, parecia-lhes agora uma dança macabra: na verdade, uma tourada. Os dias anteriores, as palavras anteriores, os beijos segundos antes do ato, pareciam a capa vermelha se agitando, eterna e sedutora. As mensagens queridas, as conversas íntimas, planavam e se agitavam aos seus olhos. Como dois touros, avançaram sobre a capa.

Agora, o toureiro fazia tic-tac e os despertava da magia. O toureiro enfiava espada por espada a cada segundo. Enfim, se levantaram sem olhar que, para trás, havia marca de sangue e suor numa arena de areia e ilusões...

2 comentários:

  1. Não é crueldade. Você apenas despeja sobre as as palavras, sentenças e cenas o azedume natural dos fatos — aí o cruel: você esmaga os limões de maneira mordaz, impiedosa...

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