domingo, julho 24, 2011

O mesmo

            Ao nascer do sol, ouviu-se os gritos das crianças que iam à escola: “Tem uma mulher morta no matagal”. Bastou a palavra “morta” gritada menos com terror do que excitação, para colocar todo o bairro de pé.  Aos solavancos, almas que se contorciam penosamente em busca de mais alguns segundos no calor e na segurança do lar, puseram-se de pé, e correram para fora. Não que fosse alguma novidade a morte, ou a morte ali próxima, mas era um ritual religiosamente cumprido por todos, sem qualquer raciocínio.

            O vigia, que estava abandonando seu posto, mudou de direção: ia se atrasar, mas tinha que saber do que se tratava. As mesas de café não foram postas para que se conseguisse um lugar privilegiado, mais próximo possível do corpo, mas não tanto que se pudesse tocá-lo. Barbas deixaram de ser feitas e alguns já visualizavam duas reações: o atraso no trabalho incitaria uma bronca, mas o relato do fato transformaria isso em algo menor.

            As crianças corriam e jogavam suas pastas e cadernos para o alto e ninguém se importava. Era até bonito: o sol erguia-se num céu limpo, azul, azulzinho, sem nenhuma nuvem e pincelava com mãos fortes de tom laranja largas faixas cor-de-ouro. O cheiro do sereno secando nas folhas, deixava um leve aroma de hortelã e mamona. As vozes eram baixas, respeitosas, ininterruptas no entanto. Soavam à romaria, com seus tons lamentosos e profundos.

            O corpo era de uma jovem, devia ter no máximo 16 anos: branquinha, pele bem lisinha, cabelos lisos e claros, quase beirando o branco. Todos notaram como seus cílios eram longos e bem cuidados. Estava com um vestido bonito, escuro e despida de sua calcinha, que borboletava pendurada numa árvore. Parecia um anjo, mas em torno de seu pescoço notava-se marcas roxas de mãos e seus lábios não tinham cor alguma. Também estava com marcas de mordidas na orelha. De resto, era muito bonita.

            Os que estavam na frente, tinham que firmar os pés para não serem empurrados contra o corpo. Ficavam alguns segundos, murmuravam alguma coisa e davam lugar para os que vinham atrás. Estranho balé, cercado pelas crianças que decidiram que era uma boa hora para uma disputa de bola. E o dia se alongou. Passou uma hora, duas horas e vai-e-vem, alguns já tinham se aproximado três vezes. Quando iam para o fundo da multidão, enchiam-se de voz brava e diziam “que mundão, matar dessa maneira”. Outros reclamavam que era sempre ali que apareciam os corpos e ninguém tomava providência.

            Depois, a novidade foi passando e alguém notou que a polícia ainda não tinha chegado. Já era quase meio-dia, mais de quatro horas depois que o corpo fora encontrado. Começaram alguns a apostar quanto tempo demoraria para que as autoridades chegassem. Da última vez, chegaram antes da uma da tarde, mas alguém se lembrou da vez que duas crianças mortas passaram quase dois dias ali, e tiveram que ficar espantando urubus. Ninguém saia dali: era uma boa desculpa, infalível, para justificar o atraso, como já dito. Tinham que ouvir o relatório da polícia, dada às pressas, entre alguns minutos de agacha-levanta em torno do corpo, geralmente o mesmo: assassinato. Mas ninguém arredava e aproveitavam para colocar as conversas em dia, reclamar atrasados, convidar para batizados, prometer de novo o que nunca se cumpria. As vozes iam se erguendo, misturadas a disputa ferrenha no jogo ao lado, e ao dia já a todo vapor em torno.

            Sempre o mesmo.

            E o mesmo também quando a velha, que ninguém nunca perguntou o nome e só o que sabiam era mais enredo de janela do que fato, trouxe o velho lençol branco bordado com lantejolas prateadas e pôs sobre o corpo. Daí, todos se lembraram de abaixar a cabeça, rezar e mandar aos diabos as crianças que adoravam essa cena em particular e cantavam em sintonia: “Ema, ema, ema, cada um com seus problemas”.

domingo, julho 17, 2011

Desde ( )

            Ela levantou-se do tatame, com a barriga doendo e todos os ossos do corpo pedindo que parasse, mas algo, uma imagem, palavras de carinho, uma frase de pára-choque de caminhão que parecia uma mensagem divina, trinta anos de luta contra a opressão masculina e patriarcalista, fizeram-na levantar e voltar para a posição de luta no tatame. Não seria derrotada por um outro homem qualquer, alguém que não tinha seu nível intelectual, nem sua criação e nem um sobrenome impronunciável no sistema fonético local.
            Desde que terminara seu namoro, construído com viagens a lugares paradisíacos, aulas de pompoarismo, roupas exóticas, almoços em família, revistas de decoração de ambientes campestres, planos e cronograma feito meticulosamente em planilha Excell, sentira-se roubada de um mundo que seria seu por direito legal e econômico.
            Afinal, era loira, tinha todos os dentes, fizera uma operação corretiva no nariz, fazia exercícios com regularidade, estava doutorando-se em Letras, sabia discutir com certa profundidade noções de mito, construção de verossimilhança e teoria da recepção, além de contar ótimas piadas. Também conhecia vinhos californianos e sabia distinguir Monet e Manet.  
            Colocou os pés em posição no tatame e respirou fundo, mentalizando as opções que tinha de golpe e dizendo para si mesma que era geneticamente, instruidamente, socialmente, e estava na moda, muito superior àquele homem alto, cheiro forte, mãos calejadas e pele escura. Golpearam-se.

            Á noite, gritou o nome do seu oponente, entre gemidos que mais pareciam o ganir de um cachorro e entendeu finalmente o que Nietzsche dizia sobre a dança, o que Darwin dizia sobre o gene, e , principalmente, porque sentia-se sempre uma peça de quebra-cabeça sem jogo para montar. 

sexta-feira, julho 08, 2011

História sem nexo

  A noite era por demais silenciosa para que houvesse gritos. Mas haveria lágrimas. Haveria palavras bem construídas, emplastros em forma de abraços, desejos sinceros de que a estrada estivesse sem perigos. Mas são as lágrimas que contam a história:

_ Não sirvo para ti.
_ Ninguém serve.
_ Sirvo ainda menos pois sei que sirvo somente para mim, e mal dou conta do que sou.
_ Nunca te pedi.
_ Todo o teu ser: teus olhos, teus suspiros, teu sorriso. Eles me pediram. Não posso te dar.
_ Então, adeus.

 Mas a noite era mais real do que as palavras podem recriar e as lágrimas também. Elas pedem a realidade do chão, a rudeza da dor e não um esteticismo cruel:

_ Acho que não vai rolar mais...
_ O que aconteceu?
_ Sei lá, nem eu sei direito..mas não tá rolando...
_ O que você quer de mim?
_ Nada, só quero que você seja feliz.
_ Então, adeus.

 Não há história sem um nó, nem relato sem emoção. Mas há ainda a história das lágrimas, que aqui serão contadas entre outras, pintadas de palavras que fingem que compreendem mas se assustam quando se pronunciam:

_ Não chore...eu queria que as coisas fossem diferentes. Que eu fosse diferente. Que o mundo fosse diferente. Mas o que sou só te levará, sempre, para essa mesma fala que dirás no fim...
_ Qual fala?
_ Que sou só um reflexo pálido e fugidio de possibilidades que escureço com minhas próprias mãos.
_ Nunca falaria isso...só não entendo o que aconteceu.
_ Aconteceu o que acontece todos os dias e continuará acontecendo sempre: queremos saber que seremos velados por alguém que viu nosso rosto sem máscaras.
_ Eu vi teu rosto.
_ Você viu o que eu quis que você visse: alguém melhor, um projeto que nunca levaria à cabo, uma intenção sincera com ausência de vontade verdadeira.
_ Então é assim? Adeus?
_ É...
_ Nem vai mentir pra mim? Dizer algo pra aliviar essa dor?
_ Um dia você vai entender...eu não entendo, só reproduzo algo que os milênios insistem em gravar.
(Lágrimas. Verdadeiras. De alguma forma divinas. Irmãs da nossa patética força divina em acreditar em algo além de nós)
_ Preciso ir...
_ Não vá...
_ Eu vou...

....

  O silêncio diz: és só um reflexo pálido e fugidio de possibilidades que escureces com tuas próprias mãos.

 O sol chegando diz: mas nunca saberás, como nunca saberemos.

terça-feira, julho 05, 2011

Apanhadores no campo das palavras

  O olhar precedeu o toque. O toque precedeu o som. O som precedeu a palavra. Esta, libertou-se e percorreu os séculos. Voou de uma noite estrelada e fria, em que a aproximação garantiria a sobrevivência, ou como agradecimento de alguma caçada bem-sucedida, em que o alimento compartilhado ganhava outra imagem. Nunca se saberá. Libertou-se e foi, pelos séculos, revestir-se de outros sons e outros significados, tentando ser sempre o mesmo.

 Foi proferido por todos: religiosos, combatentes, mães, filhos, déspotas, assassinos, heróis. Cumpriu sua jornada, ecoando nos salões de palácios, rezada pelas abóbodas de igrejas, protegeu as paredes de casebres, pôs pão na mesa dos tristes. Universal, sua semente múltipla dizia o mesmo dizendo de formas distintas. Individual, a cada vez era renovada pelos lábios que a proferiam.

 Viajou de boca-em-boca, como alento diário. Foi cantada, como supremo tema. Escrita, como última promessa. Fotografada, como ato inesperado. Filmada, como boneca vestida. E foi se tornando comum. Encontrada em qualquer parte, em qualquer vocabulário. Perdeu-se, no seu uso, o uso original. Significa muito. Significa nada.

 É o resgate da sua origem que traduz-se o viver em dois: é encontrar, entre milhares de iguais, aquela. A mesma que significou sobrevivência e agradecimento. Entre milhões de imagens, a única que interessa: o olhar. Entre milhões de sons, entre milhões de toques, o mesmo que precedeu a origem. Buscamos com mãos ávidas, perdidos como quem apanha num campo imenso e infindável, palavras sem conteúdo. Buscamos, em dois, pois talvez seja só duas mãos que possam descobri-la, a palavra amor. E encontrá-la será despi-la de toda e qualquer maquiagem que os séculos, os espaços, os usos, os meios, insistem em ocultá-la de sua verdadeira semente: um olhar, um toque, um som.