terça-feira, dezembro 27, 2011

Novo livro de filosofia

   Ainda tenho olhos, mesmo acanhados por detrás de óculos cada vez mais grossos. Ainda tenho a pele, cada vez menos sensível ao toque do outro, como se surgisse por debaixo escamas. Ainda respiro, de quando em quando, com um pouco mais de esforço do que o mecânico de enviar algum oxigênio para dentro do corpo que me move. Move, com cada vez menos empatia e menos sangue: as pernas preferem, por hábito e por filosofia recém-descoberta, ficar prostradas em posição de 3:50. Sinto, não saberia mais dizer o porquê, como se fosse um mero mecanismo de carne cada vez mais flácida e vontade mais fleumática; sinto como se tivesse me entregado sem resistir. Mas isso é de outro livro, não o novo.

 Sei, mais por inércia do que por cognição voluntária, do mundo em geral. Ainda sinto o gosto de cerveja, mas de quando em quando: não se deve relaxar o espírito, diz meu novo livro de filosofia, ainda não escrito por ninguém, mas que vou reconhecendo no olhar dos outros. Não se deve relaxar, pois haverá o dia do algo. Nesse, tenho minhas próprias imagens e minha própria trilha sonora. Não me entrego mais: meu livro, lido no olhar dos outros, diz que devemos nos preservar, moldar nossos sorrisos no ângulo exato que construa um agudo com o sorriso do homem à direita, sem deixar de fazer um semi-círculo com os cílios da mulher logo a frente. É difícil essa nova filosofia, e por vezes quase abri mão dela. Mas resisto.

 Outros tempos, precisava de razões, motivos, motivações para me movimentar. Aprendi, na sabedoria dos apertos de mãos, dos abraços em reuniões, das vozes que soam num misto de alegria e consternação (essa voz eu treino sozinho, durante o banho, mas confesso que ainda não dominei tal técnica), que as palavras "missão", "tática empresarial", "fator de propaganda", e outras expressões que soam parecidas, são ditas nas mesmas frases e pelas mesmas bocas- donas das mãos que apertam com força e alegria - que nos dizem que estamos mais magros, mais jovens, mais alegres. A minha nova filosofia contraria a lógica biológica, social, histórica, mas ao menos diminuí a quantidade de sobrancelhas que se levantavam em minha direção. O novo livro garante minha subsistência e parece fazer a todos extremamente certos e seguros de si, até porque só existe uma ideia, um objetivo: a construção da equipe. Tenho quase certeza de que a equipe é meu porto seguro, e ganhamos todos: eles me ajudam e eu os ajudo.

 O vocabulário desse novo livro, que tenho me esforçado para entender, é limitado, mas cada palavra serve exatamente igual as outras: ocupam um espaço importante, de tempo e de articulação de ideias, sem o que, teríamos que voltar ao tempo de ter que ver as coisas de fato e dizer, absurdo, as coisas como elas são. E mais importante: não é o significado que importa. É o tom e a forma como ela é dita. Um exemplo: "Nossos esforços devem ser no sentido de manter a coesão social e garantir que nossas ideias sejam compreendidas e satisfaçam a todos, mantendo o stablishment e o status quo, dentro da lógica das múltiplas inteligências ". Escrito, não parece grande coisa. Entre lágrimas, ressaltando os pronomes pessoais possessivos(nossos, nossas), entrelaçando as mãos como se significasse a tal união, causa um grande efeito. Gosto desse novo livro. Já tentei fazer o mesmo dizendo para um grande público a frase seguinte e causou grande emoção, lembrando da regra do uso generoso da ideia de coletividade, de objetivos, de usar expressões estrangeiras, de adjetivos : "Nossa pizza de muzzarela com aliche, é prova do nosso esforço e nossa capacidade digestiva excepcionalmente treinada desde o paleolítico".

  Às vezes, sonho que o dia do algo não será a mera repetição do dia anterior, como os olhares insistem em me tranquilizar. Sonho que haverá um grito primordial, vindo do grupo que se esquentava num clichê de lata de ferro, debaixo de uma ponte, e que eles, tal qual os primatas de 2001 de Kubrick, erguerão seus instrumentos e começarão uma onde de violência e destruição, que, como uma gripe, se alastrará. Será a ideia da equipe difundida ao limite. Coerente.E haverá uma trilha sonora distante, soando abafada, debaixo da cama e será eu mesmo, rindo do absurdo que toda a filosofia do mundo ajudou a construir, ajudada com afinco pelos nossos corpos que, de vez em quando, ainda tentavam nos dizer e nos mostrar as coisas que cada vez menos queríamos e podíamos ver.