segunda-feira, dezembro 13, 2010

Rito


A data não começou aleatória. O menino do meio tossiu por dias, febrilmente. O médico disse: "Não é nada", mas o menino teimou em continuar tossindo e aumentando a temperatura do corpo. Um dia, não tossiu mais. O pai decidiu aquele dia como obrigatório para que toda a família se reunisse e almoçasse junta, uma vez por ano. Eram oito, menos o menino, ficaram sete. Uma tia, irmã da mãe, solteirona, como se dizia, meses depois morreu também. Tétano. Foi abrir uma lata enferrujada, não cuidou do corte e morreu dormindo, com o tricô ao lado. A mãe decidiu começar a fazer porta-retratos. Artesanais, com detalhes nas laterais: para o filho morto, colocou anjinhos tocando trombetas. Para a tia, depois de muito pensar, colocou uma santa qualquer, que achava que combinava com a irmã. Durante alguns anos, todos almoçavam e os porta-retratos ficavam nos respectivos lugares dos ausentes. A mãe deu para servir um prato para cada ausente também e o pai pedia que todos rezassem antes de comer.
Um dia, o filho mais velho casou e se mudou, para longe. Não mais poderia ir aos almoços. Duas ausências depois, a mãe fez um porta-retrato com anzóis e âncoras, o filho era marinheiro, morava na Ásia. A foto do mais novo estava ficando amarela, como da tia, mas ninguém se importava. Uma vizinha, sabendo do fato, disse que era mau augúrio colocar a foto do filho vivo daquela maneira. A mãe disse que toda distância era uma morte.
Quando o pai morreu, do coração, parou-se de rezar antes de comer. Mas a mãe colocava sempre sua comida preferida, e lembrava sempre de deixar o saleiro próximo ao retrato emoldurado por enxadas em miniatura e um burrinho. Colocava também mais verduras no prato do filho mais velho, pois imaginava que ele precisaria. Assim, os anos passaram-se.
Um a um, os filhos foram se mudando e deixando de voltar para aquele almoço. Nem a mais velha, que a mãe tentou ensinar a fazer os porta-retratos, voltava mais. Um a um, foram ganhando porta-retratos na mesa. Um dia, a mãe, após preparar incansavelmente o almoço e servir toda a mesa, lembrando de detalhes como o saleiro, de tirar a gordura da carne da filha mais nova, e de limpar todos os porta-retratos, colocou um novo na mesa. Com uma foto antiga, de uma mulher que sorria: esperançosa da vida. O porta-retrato era emoldurado com pequenas fotos de todos aqueles que nãp mais se sentavam à mesa. No seu prato, antes de comer, colocou veneno de rato, e decidiu rezar, mesmo não sendo mais um hábito.

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