quinta-feira, outubro 28, 2010

Admirável mundo novo

Houve um tempo. De fortes. Ou é forte apenas aquilo que nos resta, no coração ou na ilusão? Tempo de horizontes. Ou de janelas entediadas? Mas houve um tempo. Que as palavras, às vezes, resgatam, pelo tempo infímo que dure o som delas. Mas que as pedradas, no peito, marcam para sempre. Houve o tempo das palavras. Houve o tempo das pedradas. E hoje? Qual o tempo que nos resta? Ligo a televisão e dou boas vindas ao absurdo do mundo se esvaindo nas marcas de celulares, nas poses calculadas dos manequins, nas notícias de hoje que amanhã serão esquecidas. Bem-vindo seja tú, mundo morto, de bonecos ventríloquos e sorridentes. Seria este espaço mais um epitáfio deste nosso mundinho? Há o tempo das pedradas. Há o tempo das palavras. Espero que não. Desligo a televisão e é só isso que quero sentir. O esperar. Pego uma pedra no chão da minha memória. Pedra feita de palavras, de um tempo forte. De fortes. E arremesso. Que te atinja em teu peito e lá, fique, marcada para sempre.

quarta-feira, outubro 20, 2010

Na saída da Tabacaria

Sou o novo gerente comercial da Casa X e Co. Olho-me ao espelho e sinto-me um gigante, com meus suspensórios finamente tecidos com chita indiana, alças inglesas e desenho de um francês que atende à dedo poucos homens influentes. Indicação do dono da companhia que dedico já 30 anos da minha vida, desde as calças curtas até hoje, os suspensórios. Ele é meu sogro também e sei que isso ajudou essa escalada vista pelo jornal do comércio como “um feito de um distinto homem prático e simpático, sito à Rua...”. Sou prático e a vida é prática. Por aqui se discute demais as “coisas que não vemos e nos influem” mas eu ignoro tais elucubrações. A vida é um jogo, entre comer e ser comido, mandar ou obedecer, ser ou não ser. Eu, hoje, mais do que nunca, sou. E espero logo ser ainda mais. Ouvi recente um chiado interessante, entre pigarros, do meu patrão e parente. Dois invernos vigorosos e serei sócio da empresa. Quão simples é a vida?
Quero comprar um casarão próximo à praça nova. O casarão era de um nobre, falido e desfalcado pelos filhos “estudantes e futuros pensadores da Nação” como os chamou o Jornal da época de suas formaturas. Sei que um deles ficou louco, estudou as estrelas e sua influência nos homens. O outro virou artista, o que é uma maneira de ser louco e poder estar a andar sem as camisolas sem mangas. Pobre família. A viúva pediu um preço justo, mas sou melhor comerciante que ela. Mesmo à luz do seu :”isso é só para me manter e aos meus filhos até minha morte, que não tarda mais três anos”, sei que posso pagar a metade. Seria até um favor à ela, já que teria que optar entre parar de sustentar os inúteis ou morrer antes. Vou ligar ao meu gerente e pedir para aumentar meus depósitos para a minha aposentadoria...
Mas preciso também manter minha imagem de homem cível e consciencioso. Vou depois na associação distribuir alguns abraços, doar alguns sorrisos e, hoje que estou particularmente feliz, fazer um belo cheque para algumas pobres almas. Preciso ligar para o Jornal. Publicidade de homem caridoso abre muitas portas, amolece muitos negócios e minha esposa dedica alguns carinhos especiais nessas ocasiões. Também me vêem, subitamente, a idéia de, quando morrer, ser aplaudido como homem de bem e quase consigo ler obituários a meu respeito, em corpo grande e letras épicas, ocupando páginas e páginas dos jornais. Os discursos dos conhecidos, chamando-me de “homem da Nação na grandeza e homem de Deus no contato íntimo”. Olho-me novamente no espelho. Preciso perder a barriga...
Nada mal, penso, enquanto desço a rua, em direção à Tabacaria. Tenho filhos, obedientes e práticos como eu. Um deles sabe fazer armadilha de coelhos e o outro faz contas de cabeças que é um espanto. Engenheiros. Eu os quero engenheiros. Já me vejo sentado no auditório, ouvindo os discursos de agradecimentos, vendo-os de preto e capelo de honra, com a ponta dourada de distinção aos melhores alunos. Não é fácil criar filhos, mas minha esposa, boa e dócil mulher, muito ajuda, nunca me reprovando ou dando ordens que não sejam minhas. Sei que um deles deu uma época para desenhar frutas e mostrou interesse em artes. Crianças são fáceis de moldar. Alguns mimos, alguns brinquedos e algumas visitas à construções e suas máquinas e ele logo já se via engenheiro. Eu não estudei. Mas venci assim mesmo.
Compro vários charutos, para distribuir aos homens distintos que encontrarei. Espero que a notícia já tenha corrido, pois quero fazer minha cara de humildade, dizendo ser Deus o responsável pelo meu sucesso, o apoio dos compadres, a família, etc. Faz boa figura não subir no sucesso, até porque em caso de fracasso, pode-se sempre contar com um e outro colega de profissão, desde que seus egos sejam devidamente inflados. Aprendi isso na vida, nunca em escola alguma. Faz bem ter sido pobre e ter gosto pelas coisas da vida. A vontade de conseguir aumenta. Nada melhor do que conseguir o que se deseja: espartilhos, casa, charutos, aplausos.
Quando saio, vejo um rapaz que conheci um dia, tempos atrás, no bar do centro. Ele falava e declamava versos confusos, entre olhares de desconfiança de alguns e aplausos tímidos dos poucos que o acompanhavam. Falava de verdades e idéias para mudar o mundo, como nós o vemos e outras frases, longas e cansativas para mim. Achei-o simpático, inofensivo e paguei-lhe uma bebida. Por gratidão, ele me disse alguns versos que, confesso, não lembro, mas gostei de sua empolgação, imaginei-o um bom funcionário de escritório e até um bom vendedor. Nunca mais nos falamos, e de tempos em tempos, nos cruzamos. Ele me parece ter envelhecido anos em dias e parece abatido. Não me lembro seu nome; ainda assim lhe dirijo um adeus, ao sair da loja. Ele me responde “Adeus, ó Esteves” e me surpreende que se lembre do meu. Não deve ser tão atarefado quanto sou, nem tão importante...

quinta-feira, outubro 14, 2010

Os mineiros

Trinta e três mineiros ficam preso numa mina de carvão, há mais de duzentos metros da superfície. Apertados, quase sufocados, já esperando o momento em que o instinto começará a falar mais alto e eles disputarão no palitinho quem será a próxima ceia,quando uma broca consegue furar um minúsculo buraco e passar um cabo. Surpresa do mundo é o fato de eles estarem vivos, já que o desmoronamento deu a impressão de ter matado a todos. Logo, toda a população do local e de outros se mobiliza. Chega uma câmera e um microfone, para se comunicarem. Se faz chegar comida, água. Eles pedem bebidas e cigarro. Os médicos não recomendam, temendo exaurir o oxigênio da minúscula caverna que sustenta toneladas de terra. São informados que terão que aguardar alguns meses antes do resgate ser possível. É uma operação delicada, temerosa, pois qualquer movimento mais brusco pode fazer com que o teto desabe. Durante dias o mundo assiste aquela espécie de teatro ao vivo. Eles fazem graça. Às vezes um ou outro chora e confessa-se às câmeras, como se estivesse dentro de um confessionário. Descobre-se seus gostos. Seus times de futebol. Seus amores. A resistência que demonstram, de carne e alma, torna-se exemplo de superação humana, de sociabilidade. Acompanha-se seus dias como se olhassem-se para santos redivivos.Um intelectual proclama que é a alegoria da história da humanidade: a vitória do homem sobre a natureza. O maquinário humano, antes inimigo, como salvação contra a natureza revoltada. Outro diz que são os próprios homens na Caverna de Platão e sairão de lá com uma visão de si e do mundo que poderá ser reveladora à humanidade. Surpreende a harmonia, sem disputas pela diminuto espaço, sem vaidades. A imagem deles passa a ser televisionada para o mundo, 24 horas por dia. Algumas casas colocam suas fotos nas paredes, ao lado de papas e ex-presidentes. Alguns colocam imagens religiosas, e ouve-se que outros colocam copos de água perto da imagem, seja ela de um televisor ou de um monitor, e que tal água estaria curando doenças. A movimentação para libertá-los atinge proporções bíblicas. Nações, empresas, indivíduos oferecem dinheiro, ajuda, rezas. Alguns, desesperados, tentam cavar com as próprias mãos mas são detidos, pelo temor do perigo do desabamento.
Uma escavadeira, tempos depois, consegue chegar até eles, levando uma cápsula que os tirará, um a um, de dentro da mina. O mundo para, observando, torcendo os lábios, franzindo o cenho, murmurando palavras de esperança. A cápsula desce, lentamente, com dificuldades, batendo com certa preocupação no buraco cavado. No entanto, chega até eles. O primeiro entra e é puxado, lentamente. Uma operação que dura trinta minutos. O mundo prende a respiração, até que este casulo liberte finalmente os presos. Teme-se que o cabo se rompa e toda a operação seja um desastre. Quando a cápsula aparece as pessoas do mundo inteiro se abraçam, gritam vivas. Ouve-se, por toda parte, pedidos de desculpas, de casamento, promessas de projetos. A porta se abre lentamente, e o homem sai, de óculos escuros para não ferir a vista. Todas as câmeras, todos os microfones, todos os corações esperam pelas primeiras palavras. Tem-se a impressão que o vento para, o mar para, os pássaros não voam. Ele, lentamente abre a boca e diz: "Alguém vai ser processado pelos meus advogados". E Deus ri.

terça-feira, outubro 12, 2010

Menos rugas, menos rusgas

Não sei exatamente quando eu deixei de me envolver emocionalmente com as pessoas, especialmente as mulheres. Bêbado, sei que amo todas, indiscriminadamente. Sou capaz de prometer minha alma. Mas isso dura pouco. Exatamente até o primeiro copo de café forte, sem açucar. Nem sempre foi assim...Creio, no entanto, que minha cota de amores se foi e restou somente (acho que deveria colocar aspas em somente) a questão sexual. Não é ruim. Ruim é ver olhos desesperados(porque convenhamos, olhar para mim com amor é desespero...)e saber que vai magoá-los. Há sempre um demônio cantando como pano de fundo: You can´t always get what you want...e vida que segue.
O amor me parece superestimado. Não, vou reescrever essa frase. Relacionamentos me parecem superestimados. Muita propaganda de margarida, muito filme desse filão. Tive minha cota de filmes, alguns bons, outros medíocres. Rezei muito para conhecer "a mulher". Rezei muito para "a mulher" ir embora. Hoje rezo, pateticamente, por não morrer em casa, sozinho, para não dar trabalho para meus amigos e parentes. Deixo um recado para a arrumadeira, que vem semanalmente, pregado na geladeira: "Se eu estiver morto, ligue para a funerária e eles sabem o que fazer".
Não há tristeza, nem melancolia, pois nada há além da constatação que, em algum momento, nada haverá. Não haverá muito para chorar nem para rir. Se Deus existe, ele mandará um dos seus anjos me avisar uns cinco minutos antes que será minha hora. Vou abrir um vinho que guardo há bom tempo, comer uma bolacha de água e sal e pensar comigo mesmo: "Me ferrei. Há Deus, logo eu devo ir para o outro lado." Se não existe, a arrumadeira vai tomar um belo de um susto...Nada como uma saída digna de uma vida sem grandes sentidos...

quarta-feira, outubro 06, 2010

O Espelho

Sem poder pagar direitos autorais, mas prestando homenagens sinceras e me procurando entre aquelas sábias palavras, dou aqui um passo. O primeiro. Já sem saber se haverá outros. Vai depender daquilo que este espelho, esfumaçado, me apresentar...E já não gostei. Eu sempre faço caretas ao espelho. Eu sei que sou, ideologicamente, uma espécie de careta ao mundo e ao que quer que seja. Não é má-educação. É princípio. E não é uma careta arrogante. É o meio termo entre a brincadeira leve e a séria desconfiança das coisas. Passo a mão no espelho, tentando melhor me ver. Piorou. Os olhos não são a janela de nada, ainda mais se você está com sono. As rugas não demonstram a vivência e sim falta de cuidado com a pele. A boca que sorri, ou que beija, como diria o grande poeta, é a mesma que escarra...
Difícil querer continuar no espelho. Posso sentir falta da farda de alferes ou ver uma fera. Posso me ver. Posso não gostar, o que me levaria a refletir sobre mim? Posso gostar, o que me levaria a refletir sobre o ser que reflete sobre mim? Vislumbro algo...Escuto algo...distante ainda...parece a entrada de um labirinto...parece o som de alguma criatura meio humana, meio animal. Vou? Não tenho a minha Ariadne e nem sou filho de deus. Então, vou, pois a graça é exatamente saber-se humano, demasiado humano e não querer estar abençoado ou protegido...E olho para além do espelho...