quarta-feira, outubro 20, 2010

Na saída da Tabacaria

Sou o novo gerente comercial da Casa X e Co. Olho-me ao espelho e sinto-me um gigante, com meus suspensórios finamente tecidos com chita indiana, alças inglesas e desenho de um francês que atende à dedo poucos homens influentes. Indicação do dono da companhia que dedico já 30 anos da minha vida, desde as calças curtas até hoje, os suspensórios. Ele é meu sogro também e sei que isso ajudou essa escalada vista pelo jornal do comércio como “um feito de um distinto homem prático e simpático, sito à Rua...”. Sou prático e a vida é prática. Por aqui se discute demais as “coisas que não vemos e nos influem” mas eu ignoro tais elucubrações. A vida é um jogo, entre comer e ser comido, mandar ou obedecer, ser ou não ser. Eu, hoje, mais do que nunca, sou. E espero logo ser ainda mais. Ouvi recente um chiado interessante, entre pigarros, do meu patrão e parente. Dois invernos vigorosos e serei sócio da empresa. Quão simples é a vida?
Quero comprar um casarão próximo à praça nova. O casarão era de um nobre, falido e desfalcado pelos filhos “estudantes e futuros pensadores da Nação” como os chamou o Jornal da época de suas formaturas. Sei que um deles ficou louco, estudou as estrelas e sua influência nos homens. O outro virou artista, o que é uma maneira de ser louco e poder estar a andar sem as camisolas sem mangas. Pobre família. A viúva pediu um preço justo, mas sou melhor comerciante que ela. Mesmo à luz do seu :”isso é só para me manter e aos meus filhos até minha morte, que não tarda mais três anos”, sei que posso pagar a metade. Seria até um favor à ela, já que teria que optar entre parar de sustentar os inúteis ou morrer antes. Vou ligar ao meu gerente e pedir para aumentar meus depósitos para a minha aposentadoria...
Mas preciso também manter minha imagem de homem cível e consciencioso. Vou depois na associação distribuir alguns abraços, doar alguns sorrisos e, hoje que estou particularmente feliz, fazer um belo cheque para algumas pobres almas. Preciso ligar para o Jornal. Publicidade de homem caridoso abre muitas portas, amolece muitos negócios e minha esposa dedica alguns carinhos especiais nessas ocasiões. Também me vêem, subitamente, a idéia de, quando morrer, ser aplaudido como homem de bem e quase consigo ler obituários a meu respeito, em corpo grande e letras épicas, ocupando páginas e páginas dos jornais. Os discursos dos conhecidos, chamando-me de “homem da Nação na grandeza e homem de Deus no contato íntimo”. Olho-me novamente no espelho. Preciso perder a barriga...
Nada mal, penso, enquanto desço a rua, em direção à Tabacaria. Tenho filhos, obedientes e práticos como eu. Um deles sabe fazer armadilha de coelhos e o outro faz contas de cabeças que é um espanto. Engenheiros. Eu os quero engenheiros. Já me vejo sentado no auditório, ouvindo os discursos de agradecimentos, vendo-os de preto e capelo de honra, com a ponta dourada de distinção aos melhores alunos. Não é fácil criar filhos, mas minha esposa, boa e dócil mulher, muito ajuda, nunca me reprovando ou dando ordens que não sejam minhas. Sei que um deles deu uma época para desenhar frutas e mostrou interesse em artes. Crianças são fáceis de moldar. Alguns mimos, alguns brinquedos e algumas visitas à construções e suas máquinas e ele logo já se via engenheiro. Eu não estudei. Mas venci assim mesmo.
Compro vários charutos, para distribuir aos homens distintos que encontrarei. Espero que a notícia já tenha corrido, pois quero fazer minha cara de humildade, dizendo ser Deus o responsável pelo meu sucesso, o apoio dos compadres, a família, etc. Faz boa figura não subir no sucesso, até porque em caso de fracasso, pode-se sempre contar com um e outro colega de profissão, desde que seus egos sejam devidamente inflados. Aprendi isso na vida, nunca em escola alguma. Faz bem ter sido pobre e ter gosto pelas coisas da vida. A vontade de conseguir aumenta. Nada melhor do que conseguir o que se deseja: espartilhos, casa, charutos, aplausos.
Quando saio, vejo um rapaz que conheci um dia, tempos atrás, no bar do centro. Ele falava e declamava versos confusos, entre olhares de desconfiança de alguns e aplausos tímidos dos poucos que o acompanhavam. Falava de verdades e idéias para mudar o mundo, como nós o vemos e outras frases, longas e cansativas para mim. Achei-o simpático, inofensivo e paguei-lhe uma bebida. Por gratidão, ele me disse alguns versos que, confesso, não lembro, mas gostei de sua empolgação, imaginei-o um bom funcionário de escritório e até um bom vendedor. Nunca mais nos falamos, e de tempos em tempos, nos cruzamos. Ele me parece ter envelhecido anos em dias e parece abatido. Não me lembro seu nome; ainda assim lhe dirijo um adeus, ao sair da loja. Ele me responde “Adeus, ó Esteves” e me surpreende que se lembre do meu. Não deve ser tão atarefado quanto sou, nem tão importante...

Um comentário:

  1. Belo conto!
    eu pensei, contudo, uma besteira. você não acha que o "esteves sem metafísica" não é o nefasto do jaime?

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