quinta-feira, junho 07, 2012

MAGNUM OPUS


Já há muito não se erguem os brados.
Já não se escrevem velhos doces versos,
Não pousas mais para os tristes quadros,
Estás sozinho e em si mesmo imerso...

Do tempo que a mão a ti se erguia,
restou somente em recuo a sombra ,
do susto, como nunca antes se via,
um som distante que não mais ressoa...

Estás sozinho, em solene descaso,
pois de ser, tornou-se somente obra
de um olhar, que só te vê todo raso.

Talvez antes não fostes, nem agora,
de ti nada restará, estás no ocaso,
de uma vida que não deixou-te sobra.

segunda-feira, junho 04, 2012

SINA

O cão gane, atropelado,
Pelas rodas inexoráveis do caminhão,
 E nós, aboletados em massa disforme,
Nem notamos.
Amaldiçoamos o céu sem nuvens,
E a hora que insiste em alongar.

Um grita “está vivo, olha”,
E aponta para um algo em deformação,
É feia a carne sem pele,
É estranha a víscera em flor.

Outro se ri “parece nóis”,
E ninguém entende até que explique:
“se contorcendo para viver”.
Um tira o chapéu em respeito,
Outro come mexerica e joga as cascas.

E eu, que olho os céus em contrição,
Choro por dentro, desolado e em dor,
E pergunto às nuvens em formação,
“está feita a vossa sina, Senhor?”
Não soa som, nem soa trovão,
Mas ouve-se, entre risos, entre os meus
“eita nóis, morre logo, criatura de Deus”


quinta-feira, maio 31, 2012

RECORDAÇÕES

Pousaram os talheres,
fingindo o barulho que distrairia das lágrimas.

Um fez-se em cantigas, excomungando,
 inutilmente, do peito a dor. 

Levou-se pelas estradas da música 
para o espaço da infância, 
já em prisma borrado, sépia de uma memória 
danificada por pedras desavisadas. 

Deixou-se carregar pela melodia antiga, 
para a cama de retalhos cerzidos à serões, 
sacrifícios, soluços engolidos. 

Era da mão da mãe 
a lembrança que queria em pele,
e não distante. 
Das mesas em que as cadeiras ainda se ocupavam 
de corações virgens, intocados ainda 
pelo o que não sabiam que viria: 
o dia da mãe virar a esquina do escuro.

Outra fez-se intérprete de imagens 
que ninguém mais enxergava. 
Pôs as mãos no papel e traduziu a neblina, 
o fundo da garrafa, a lua em forma de pão.
Alimentou-se por um tempo, sem postar mesa, 
sem arrumar pratos. 
Quieta, aérea e diabólica, 
escreveu os símbolos que perderam-se nas trilhas
de coelhos que pularam em buracos, 
na pena brilhante do último albatroz, 
na calça puída do homem que abre a janela 
defronte à Tabacaria.

Em torno, os ruídos arrastados, 
do Tempo esperando, pacientemente. 
A comida esfriou. 
O leite azedou.
Não se falou mais, 
em língua permitida 
ou em gestos de aproximação. 

A seu modo, cada um deu o boa-noite 
e cada um preparou seu próprio prato, 
sua própria recepção ao Tempo. 

Ninguém mais comeu.

MENTIR AO ESPELHO

Defronte ao velho-novo espelho, 
espreito com o canto dos olhos,
já temeroso, as mãos brancas 
e virginais produzindo o trovão: 
a mágica feita sem truques 
parece ainda mais impressionante. 

Sinto também um cheiro já conhecido, 
de tabaco tostado, de ossos saídos
fresquinhos do forno do túmulo: 
a esse, já sabia o lugar. 

Mas o temor e a excitação decidem 
também fazer sombra, tapando a luz 
que me permitia ficar na ponta dos pés 
e olhar o espelho. 

Já não: pequeno, reluzo feliz 
agora a imagem do pó, 
acumulado no chão 
que insistia em fingir ser nuvem.

Abriu-se, como um ataque cardíaco,
janelas em que entram o ar fresco, 
fabricado nas entranhas de um sonho difuso, 
cheio de móbiles e de um silencioso ensurdecedor: 
quando soa, soa o som de figuras que nunca 
deram-se as mãos, mas sob sua batuta,
 harmonizam-se numa estranha sinfonia. 

São convidadas as palavras 
que nunca foram vizinhas,
 mas a ditadura do sangue puro, 
da mente de três luas, 
dos olhos que percorrem por dentro,
colocam todos os verbos 
na ordem inconveniente.

O júbilo do morto converteu-se, 
acompanhando a tal melodia, 
em novos passos, apanhados de uma árvore 
que presumia-se seca, esquecida no quintal de uma casa, 
perdida em alguma rua, que nunca deu em lugar nenhum, 
e teve sempre um espelho como beco sem saída. 
Quebrou-se o espelho e ofertou-se os olhos 
à soberania do acaso: 
alguém rasgou o livro dos vocábulos.

Crianças, 
uniram-se para recriar o verbo. 
Sem espelho, 
não havia porque mentir.

Vão

E é o vão,
entre o ir-se e o ficar-se; 
o vago momento 
de respirar 
e esperar. 

Nesse, há ainda um deus. 

Já minúsculo pois nosso coração 
semeia ventos e discórdias. 
Já distante, pois nossos olhos agridem o objetivo, 
moldando-o com o ódio do carrasco sobre o infiel. 

Mas ainda deus, 
como um bibelô de uma época de raios laranjas, 
de nuvens de almofadas. 

Agora, é sempre noite a ninar o coração. 

E é em vão: 
não há mais nada a ser destruído.
Queimou-se a porcelana. 
Limpou-se para debaixo do tapete
as lágrimas de outrora. 
Acendeu-se o lampião 
clareando uma casa vazia. 

Os moradores se foram, 
livres como vermes
que só precisam de um buraco. 

Assim é o vão. 
Assim é em vão.

AO TEMPO DO ADEUS

No tempo das palavras, a infância era a lei: 
previa-se a chuva e saia-se às ruas. 
Sabia-se o cheiro do chá 
e sentava-se às mesas para a espera.

Escrevia-se o obscuro e entendia-se o imediato. 
Todo tempo tem sua finitude e o nome 
Tempo faz-se da noção dela. 
Chegou a nossa.
Adiada pela procura 
das últimas palavras; 
queríamos que fossem 
abraços e afagos 
de quem vai pra nunca mais. 

Queríamos as palavras-fotos, 
para pô-las no bolso do casaco, 
e lembrarmos de onde saímos. 
Queríamos o adeus 
tantas vezes implícito no olá, 
já desejoso de se esvair.

Descobriu-se o tempo das pauladas. 
A lei é a da pele, do movimento, do respirar. 
Adeus dado, fazemo-nos orfãos parricidas.

Pois o tempo é sempre agora, 
sempre sensível, sempre líquido. 

E já andamos agora, fora desse espaço, 
com as fotos, os abraços, a memória, 
desde sempre lembrando-nos, 
aos risos, 
de que sempre haverá novas palavras a serem ditas,
descobertas e finalmente, preenchidas de novos sentidos. 

E nos esvaímos então no adeus, 
com tanto olá implícito.

terça-feira, maio 29, 2012

MANHÃS





MATTINA

M’illumino
D’immenso.

(G.Ungaretti)



Ah, voz suave 
e olhar generoso
mesmo entre a morte
mesmo sem a luz da manhã
Iluminou-se

E eu, que banhado
de puro escárnio
fujo do belo, do bem,
procurando-os em mim.

E vós, poeta do olhar
e das paletas do além,
encontrou no coração das trevas,
o som da vida humana 
a se renovar.

sábado, maio 26, 2012

NOITE SEM FIM

“Fica conosco, porque já é tarde, e já declinou o dia”. 
(Lucas 24:29)

Las estrellas entonces ennegrecen.
Han vuelto al dardo insomne
a la noche perfecta de su aljaba.
(Muerte sin fin, José Gorostiza)

Súbito, dou-me conta
de que estou sozinho.
Sei-me entre outros,
em plena mulidão,
mas me passa um arrepio,
um arrependimento, um não-sei,
e em ondas de silêncio,
naufrago-me em mim mesmo.

Não mais reconheço
aqueles que foram expulsos
comigo da mater-terra,
e arrastaram-se, abandonados,
pelas trilhas inóspitas,
nunca antes caminhadas.

Não são mais familiares,
os olhares, que como o meu,
buscaram na primeira madrugada,
o conforto no calor alheio.

Perseveramos, no entanto,
e cantamos a primeira voz:
ganhamos nomes, demos nomes,
afastamos as trevas
pelo verbo-luz.

Onde estão todos?
Quando nos perdemos?
Quem disse a palavra 
que criou a Lâmina
e nos cindiu, para sempre?

Por que nada vi?
Engatinhei, imerso
em meu imenso vazio,
sedento de bastar-me...

Quando levantei, agora,
os olhos, não mais te vi.
Não mais os vi.
Não mais me vi.
E tudo que soa 
é o arrastar familiar
da noite sem fim,
que, se começou no outro,
anoiteceu em mim.

terça-feira, maio 22, 2012

Sonetinho de amor

Estávamos ambos postos em sossego;
afastados em direção oposta ao perigo;
sabíamos o duro e sabíamos o meigo:
desconhecíamos o mesmo inimigo.

De corpos diametralmente isolados,
atraídos em imã da insensatez,
fomos lado a lado deslocados:
perdemo-nos de uma só vez.

E dizem, aqueles que nunca amaram,
que à força do mundo se opõe a humana!
Não tenho notícias dos que triunfaram...

Só sei que tirados de algum nirvana,
os olhos em encontros se iluminaram,
e justificaram a trajetória mundana.





domingo, maio 20, 2012

TEMPOS





Antes do mar, da Terra e Céu que os cobre


Não tinha mais que um rosto a Natureza:

Este era o Caos, massa indigesta, rude

E consistente só num peso inerte.

(Metamorfoses, de Ovídio)



Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se  anos.

(Uma Galinha, de Clarice  Lispector)




Há tempos, e numerá-los não se poderia,
as contas se inverteram: agora é sempre 
um a menos e não a mais.

Há-de zerar-se, sempre.

Noto que os sorrisos sumiram,
ou sempre que surgem
estou olhando na direção errada.

Há-de amargurar-se, sempre.

Algo dentro de mim se quebrou,
da estirpe divina ou sangue da terra,
já não sei-me em mim mesmo.

Há-de fugir-se, sempre.

E os amigos, que são deles?
Quando a estrada fez a curva
que os tirou da minha vista ansiosa?

Há-de perder-se, sempre.

E quando o leite azedou?
E as plantas secaram?
E as crianças cresceram?

Há-de dormir-se, sempre.

Dizer o futuro é, agora,
ao contrário de há muito,
ter a certeza.

Há-de findar-se, sempre.

quinta-feira, abril 12, 2012

  Queria nunca mais escrever nada que tivesse um "eu". Mas também não tenho a técnica refinada o bastante, nem o temperamento generoso, para narrar algo como se fosse um rapsodo. Enfim, o que faço com as palavras ultimamente é rodá-las, de um lado ao outro do cérebro, esperando ouvi-las ou vê-las. Nesse exercício, meu corpo ainda se torna menos diapasão e mais o muro seco e sem reboco, a cruzar de ponta a ponta uma rua. Sadisticamente, ergo esse muro-eu quase alto o suficiente para tampar qualquer visão, deixando uma fresta em que se vislumbre algo parecido com uma luz. Não se pode ver nada, no entanto, só o que parece algo colorido e vivo. Alguns chamarão de pré-poesia. Eu chamarei de epifania cíclica do fracasso deste eu que insiste em querer ser o filtro de si mesmo. Por isso, agora faço puro escarnio deste eu que vos fala. Assim, quem sabe, me encontro novamente.

terça-feira, abril 10, 2012

Abraços

  Chegará o dia dos rugidos e seremos livres. Não mais contarão  quantas vezes fizemos o outro sorrir, nem quantas vezes nos ajoelhamos para o idolatrar. Cessarão os movimentos de mãos em direção a mãos, de pés tentando acompanhar pés, de quadris se oferecendo a outros quadris. Jogar-se-á pelas janelas, em júbilo infernal, as listas com telefones de pessoas que nunca se viram; os bilhetes de espera por alguém que nunca virá e, quando vêm, não sabemos seu rosto; as fotos de extensões genéticas que se afastaram sem olhar para trás.

A mentira que se criou, quando o fraco temeu o forte, pela palavra e na palavra, será finalmente calada pelo rugido. Não mais olharemos aos céus com lágrimas beatas sofridas, nem louvaremos pela fraca condição humana. Acenderemos um cigarro, sim, mil cigarros, pela morte sem culpa e sem remorsos que construiremos graças ao calor do dia. Nus, rolaremos como animais uns sobre os outros, despejando litros de novos maquinários fecundados em fornos de produção baratos, ou como se diz antes do rugido, no ventre.

Não haverá mais longas palavras, nem longas frases, nem ideias que se perdem ao vento, entre um som que emana de cada célula animal e a vontade sem limites e sem razão do amanhã. Devoraremos uns aos outros, guardando o máximo de energia para algo que nem mais se nomeia: apocalipse, falta de recursos naturais, estratégia de sobrevivência? Nomes para que e quem? Ouvir-se-á, no escuro, o rangir dos cães fugindo de cães maiores ainda.

E não mais haverá um Filho, nem um Príncipe. Quem sabe, havendo Deus, e Ele ainda querendo aproveitar da humanidade, não haverá alguma bactéria que deixará sobrar apenas alguns, por algum critério misterioso, mas que ao fim e ao cabo, será o dia um antes do final, que antecederá o dia um antes de outro final, num ciclo infindável de ruídos e parábolas; de dentes afiados e sorrisos polidos; de mãos arrancando membros e apertos de mãos de pais e filhos?

O rugido precede ao abraço que precede ao rugido.

domingo, março 04, 2012

Aula

  Ao amanhecer, debruçado na janela, sei que não há campos pela frente. Tudo que vejo é um isolamento conveniente, que as imagens de centenas de edificações distantes, de cores e tamanhos diferentes, me causam. É bom ser distante e ainda melhor ser ínfimo. Pena que descobrimos tarde demais, quando já colocamos nossa cabeça para de fora da janela e gritamos desesperadamente nosso nome, como um antigo e divino troféu. Nosso nome, que achamos que diz mais que qualquer outro nome, só não é mais patético do que tal ideia. Daqui, isolado nesse prédio e invisível para os passantes lá embaixo, sei que não há nada pela frente, além dos minutos que faltam para que se finde a jornada diária de pão e mentira. Antes disso, me volta para uma classe, cheia de olhares que não me veem e não mais brilham, e, num segundo ínfimo, finjo que partilhamos de alguma luz sobre esse absurdo que séculos ilustraram com o nome de vida.

  Durante esses breves segundos, rompidos com o tempo cronológico, imagino-me endireitando minha coluna, tirando o pó de sobre meus ombros caídos, colocando os óculos de lentes baças de lado, e uma insuspeita voz permite-me banir a mediocridade do mundo. É uma sensação elétrica, que irrompe por todo o recinto. De súbito, os outros corpos que ali jaziam recuperam uma energia há muito escondida sob o véu do papel social comprado em bancas de revista, sob o olhar de um deus que há muito nem se lembra de sua criação, escondida sob a desaprovação diária de outros corpos que lutam para existir sobre outros corpos. Já não ando, marcho decidido por entre carteiras que derrubo a pontapés violentos, enquanto simplesmente palavras se formam com a força de um trovão primitivo: poderia ser desde o primeiro discurso contra um predador maior, quanto a manifestação da vitória ao dominar o fogo. Não importa. O que digo, com toda a força que um pulmão decadente e corroído pela nicotina dos anos não pode aprisionar, ilumina aquele momento.

  Em breves segundos, passamos a reconhecer em cada um o inimigo e o amante; o assassino e o pai; o silêncio e o diálogo.Não somos mais um mero papel e um mero interposto entre o nascer e o morrer. Somos um fogo com a força de destruir e construir.Podemos incendiar Roma e construir Paris. Podemos escurecer o dia e iluminar a noite. Minha pele já não mais me suporta. Tratada com o desprezo do colchão bolorento e as carícias compradas por garrafa de álcool, rompe-se para deixar um novo ser surgir. Intocado pelo desprezo, armado com a pureza do novo,  não há mais necessidade de nenhuma roupa, costurada pela técnica adquirida pela ganância e astúcia, escondê-la. Logo todos são novos ali também e são o irmão e o andarilho; o generoso e o ladrão. Sentimo-nos prontos para recomeçar e de fato, existir.

 Mas toca um alarme inaudível, avisando que o tempo é findo. Abaixo meus olhos para a mesa e digo, com uma voz saída de um corpo morto e desabitado de qualquer resquício de heroísmo ou força que é necessário ler uma página qualquer de um texto qualquer. E todos fingem ouvir e seguem arrastando o mundo sob sua poeira.