quinta-feira, maio 31, 2012

RECORDAÇÕES

Pousaram os talheres,
fingindo o barulho que distrairia das lágrimas.

Um fez-se em cantigas, excomungando,
 inutilmente, do peito a dor. 

Levou-se pelas estradas da música 
para o espaço da infância, 
já em prisma borrado, sépia de uma memória 
danificada por pedras desavisadas. 

Deixou-se carregar pela melodia antiga, 
para a cama de retalhos cerzidos à serões, 
sacrifícios, soluços engolidos. 

Era da mão da mãe 
a lembrança que queria em pele,
e não distante. 
Das mesas em que as cadeiras ainda se ocupavam 
de corações virgens, intocados ainda 
pelo o que não sabiam que viria: 
o dia da mãe virar a esquina do escuro.

Outra fez-se intérprete de imagens 
que ninguém mais enxergava. 
Pôs as mãos no papel e traduziu a neblina, 
o fundo da garrafa, a lua em forma de pão.
Alimentou-se por um tempo, sem postar mesa, 
sem arrumar pratos. 
Quieta, aérea e diabólica, 
escreveu os símbolos que perderam-se nas trilhas
de coelhos que pularam em buracos, 
na pena brilhante do último albatroz, 
na calça puída do homem que abre a janela 
defronte à Tabacaria.

Em torno, os ruídos arrastados, 
do Tempo esperando, pacientemente. 
A comida esfriou. 
O leite azedou.
Não se falou mais, 
em língua permitida 
ou em gestos de aproximação. 

A seu modo, cada um deu o boa-noite 
e cada um preparou seu próprio prato, 
sua própria recepção ao Tempo. 

Ninguém mais comeu.

2 comentários:

  1. Apesar de belos, este e o anterior, temo dizer que me parece que os textos funcionaram melhor em prosa poética que em verso.

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  2. Também achava... mas colocar em versos obriga a uma operação diferente de posto em prosa, não parece? Em prosa, o grilo falante da formação cultural no diz que deve-se chegar, com alguma coesão ao fim. Em versos, a coesão se dá por outros fatores, menos racionais. E nem me parece um poema muito racional e sim um bando de imagens em torno de um espaço: a mesa vazia.

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