quinta-feira, maio 31, 2012

MENTIR AO ESPELHO

Defronte ao velho-novo espelho, 
espreito com o canto dos olhos,
já temeroso, as mãos brancas 
e virginais produzindo o trovão: 
a mágica feita sem truques 
parece ainda mais impressionante. 

Sinto também um cheiro já conhecido, 
de tabaco tostado, de ossos saídos
fresquinhos do forno do túmulo: 
a esse, já sabia o lugar. 

Mas o temor e a excitação decidem 
também fazer sombra, tapando a luz 
que me permitia ficar na ponta dos pés 
e olhar o espelho. 

Já não: pequeno, reluzo feliz 
agora a imagem do pó, 
acumulado no chão 
que insistia em fingir ser nuvem.

Abriu-se, como um ataque cardíaco,
janelas em que entram o ar fresco, 
fabricado nas entranhas de um sonho difuso, 
cheio de móbiles e de um silencioso ensurdecedor: 
quando soa, soa o som de figuras que nunca 
deram-se as mãos, mas sob sua batuta,
 harmonizam-se numa estranha sinfonia. 

São convidadas as palavras 
que nunca foram vizinhas,
 mas a ditadura do sangue puro, 
da mente de três luas, 
dos olhos que percorrem por dentro,
colocam todos os verbos 
na ordem inconveniente.

O júbilo do morto converteu-se, 
acompanhando a tal melodia, 
em novos passos, apanhados de uma árvore 
que presumia-se seca, esquecida no quintal de uma casa, 
perdida em alguma rua, que nunca deu em lugar nenhum, 
e teve sempre um espelho como beco sem saída. 
Quebrou-se o espelho e ofertou-se os olhos 
à soberania do acaso: 
alguém rasgou o livro dos vocábulos.

Crianças, 
uniram-se para recriar o verbo. 
Sem espelho, 
não havia porque mentir.

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