quinta-feira, dezembro 30, 2010

P.

Ela nem sabe que pode ser feliz. Ou, quem sabe, sou eu que tenho aquela ideia de felicidade que se compra nos rótulos das caixinhas de presente: belas fotos de pessoas de dentes mais brancos do que a neve. Mas ela poderia ser feliz: daquela felicidade que entorpece os sentidos e faz filhos, netos e fotos. Ela também poderia ser palavras impressas no papel: daquelas que se recitam em noites em que a lua faz olhos tristes; lágrimas, quem sabe, da solidão que aflige alguns.
Mas ela é algo que eu não posso descrever, com minhas limitações de imagens, meu deus que insiste em surgir de noite, meus medos de ser pequeno. E como descrever aquilo que é maior? Minhas palavras ajoelham-se e prestam reverência às palavras dela: "Fizemos mesa e cadeira, mesa pra sentar, cadeira pra pousarmos."

E ela deve estar agora, olhando o teto e imaginando-se presa num mundo que não ouve sua voz, não sabe seu cheiro e não entende seu fogo. Não. Não entende. Há de ser um jogo maligno: a voz que fala as palavras mágicas puxa o pé para o fundo de um poço. Ou para o buraco do coelho.

(Conselho, de formiga, humildemente: Ofereças só teu coração se o prêmio for, ao final do dia, ver um sol de caramelo. Se for somente para expurgar seus pecados ainda não cometidos, sinta-se livre para seguir o primeiro parágrafo: seja feliz...mesmo eu sabendo que há uma maldição em cantarolar os verbos infinitos, como você faz, em cada sílaba.)

E eu, com lágrimas escorrendo pelo coração, desejo que os dados não a firam e não a machuquem. Que a armadura dela seja tão grossa quanto a minha...mantendo um coração que não deve chorar, como o meu...

segunda-feira, dezembro 27, 2010

De primeira... (Questionário para quem não tem o que fazer num tempo chuvoso na praia)

Sobrinhas de 9 e 10 anos. Todo mundo merece essa experiência...

# 2011? - Já esperando 2012...
# Vida após a morte? - Não, obrigado. Estou satisfeito...
# Amor? - Invenção cortês, expandida por aquele inglês esquisito, amigo da rainha...
# Se eu não fosse eu eu seria...? - Outro.
# Se eu pudesse escolher alguém, eu seria...? - Átila, o Huno.
# Se eu pudesse viver em outro tempo, seria...? - Após a extinção da ração humana, ou antes do homem aprender a andar sobre os membros inferiores. O domesticaria para ser feliz andando de quatro e comendo Purina.
#Se eu pudesse viver em outro lugar, seria...? - Qualquer lugar que eu não pudesse encontrar ninguém parecido comigo.
# Quantos filhos você terá? - 1000, um com cada mulher que sair. Quero formar meu próprio país...
# Sua comida prefira é?... - Miojo com fandangos.
# Sua bebida favorita é?... - Aquela que eu não lembro que bebi.
# Sua banda favorita é?... - Larga, sem limite de download.
# Qual será o nome de sua esposa? - Infeliz ou como gosto de nome composto, Infelizarda...
# Qual sua religião? - Corintianismo apostólico zonalestano.
# O que você quer ser quando crescer? - Ditador ou vendedor de cachorro-quente.
# O que eu mais gosto é?... - Não gostar de nada.
# O que eu mais odeio é?... - Responder questionário...

(Nesse ponto, elas ficaram chateadas e foram brincar com o cachorro. Não eu, o de pelos...)

sábado, dezembro 25, 2010

deus

Quase quatro horas de sol, no pico, fizeram-no achar ser possível o esquecimento. Do que importa colocar o dedo na ferida? Sempre dói sempre mais em nós pois a ferida só está aberta aos nossos olhos. Sol, uma conversa sobre a infância, um panetone de chocolate. Sim, parecia plausível a ideia de uma vida sem o cinza, sem procurar a poeira debaixo do tapete, sem olhar o lado sujo das faces limpas.

Duas mergulhadas pelo escorregador na piscina e a vida abria-se: radiante, simples e completamente calculável: iria arrumar uma esposa, ainda havia tempo para ter um filho e definitivamente, compraria um terreno e, em alguns anos, teria seu próprio aconchego.

Ceiaria as festas sempre com sua família, afinal, a família deve e está pronta a perdoar e encarar tudo da mesma maneira: "É só mais uma extravagância dele". Sim, era isso que precisava. Do perdão incondicional de um mundo que já não importava tanto quanto os risos, os pássaros e a melancia fresca.
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Mas há deus. E ele é cruel. No mesmo dia, foi até a praia. Lá, viu aquilo que os seus olhos doentes buscam com avidez: a estupidez humana. O ser humano no seu mais baixo valor, procurando meramente uma forma de fornicar, como cães no cio. Carros tocando músicas de gosto duvidoso, piadas sexistas e cantadas tiradas de um biscoito chinês de má qualidade: ali, a fauna se acotovelava, em bicicletas, numa calçada, buscando avidamente uma recompensa pelas milhares de horas trabalhadas atrás de balcões, apertando parafusos, dizendo sim senhor, não senhor. Ali, a ralé se esbaldava, fazendo dívidas para serem pagas com mais suor, com mais submissão, sorridentes, como o louco que anda para a forca achando que vai passear no carrosel.

E deus dá aquele sorriso de quem sabe que a dor não é dos incautos. É dos que teimam em ver. Deus ama os cegos por uma razão: qualquer dia é um milagre.

A piscina, o filho, o sol... não nesse mundo, não com esse deus.

terça-feira, dezembro 21, 2010

De repente, sincronizadamente, eles ouvem: tic-tac, tic-tac. Também começam a sentir o cheiro do hálito amanhecido, uma mistura de vinho e pão mofado. Mas o pior é quando os olhares se cruzam. Quase estranhos, ambos se recolhem e se encolhem. Há um longo momento antes que um deles sorria, amareladamente e diga algo: "É, né". O outro, tirando a remela dos olhos completa: "Pois, é". Será a última vez que estarão próximos de uma sintonia. Ela se vira, assustada, respirando com cuidado, lentamente: "Quem é esse?" Onde está aquele homem de sorriso confiante, de cheiro de homem de verdade, de mãos fortes? Vira-se novamente a tempo de vê-lo andando para o banheiro, coçando a bunda.

Ele entra no banheiro, respirando alto e fundo: "Caralho, o que eu farei agora?". Tentou se lembrar das promessas feitas. Mas pensou que promessas de alcova tem valor limitado, temporário. Há, na verdade, um acordo de cavalheiros sobre isso: se diz o que precisa se dizer antes de começar os xingamentos mais picantes...Convenção. Ela haveria de entender e até se sentir bem, sabendo que ele se lembrara das palavras certas...

Ela se veste, correndo, culpada pela nudez. Sente um frio insuspeito, um tremor que lhe percorre o corpo: "Esse desgraçado usou camisinha?" Percorre as mãos e os olhos debaixo da cama. Lá está. Suspira, quase vitoriosa. Tenta se lembrar dos olhares que fez. Xingou-se, intimamente, pelas palavras submissas, pelo olhar de cordeiro indo ao abate, mas ele deveria saber que era um jogo. Todas fazem caras e bocas, para ajudar o desempenho do parceiro e também porque é picante...Ele iria se lembrar e até empinar o peito, imaginando que a tinha feito gemer como um trem descarrilhado.

Antes de sair do banheiro, ele pensa no que vai dizer: "Gostei de você, podemos marcar uma outra vez...", mas parecia-lhe que estava marcando para ir a um jogo de futebol ou escolher meias para o dia dos pais. Decidiu não dizer nada, só acompanharia o que ela dissesse.

Antes dele sair, ela seleciona as palavras com carinho: "Quando você quiser sair, me manda um sms". Achou meio vulgar, parecia-lhe que era uma garota de programa ou alguma apaixonada. Ele era o homem, esperaria o que ele dissesse e concordaria.

Quando ele voltou para a cama, deitou-se ao lado dela e ficaram alguns minutos só olhando o teto. Sentiu-se desconfortado, imaginou que deveria tomar uma atitude, o que era a sensação dela e também seu pensamento. O desconforto aumentava a cada segundo, o ar do quarto parecia morto; pela janela entrava um rasgo de sol intruso. As lembranças de tantas conversas, parecia-lhes agora uma dança macabra: na verdade, uma tourada. Os dias anteriores, as palavras anteriores, os beijos segundos antes do ato, pareciam a capa vermelha se agitando, eterna e sedutora. As mensagens queridas, as conversas íntimas, planavam e se agitavam aos seus olhos. Como dois touros, avançaram sobre a capa.

Agora, o toureiro fazia tic-tac e os despertava da magia. O toureiro enfiava espada por espada a cada segundo. Enfim, se levantaram sem olhar que, para trás, havia marca de sangue e suor numa arena de areia e ilusões...

My Way - Frank Sinatra



"The Old Blue Eyes"...houve um tempo em que os homens eram charmosos até sendo filhos-de-uma-puta...Rat Pack...Belos nomes para grupos que só queriam beber, cantar e conhecer todas as mulheres biblicamente...E pensar que o Sid Vicius canta essa música com desdém...sorte que ele era só um magricelo inglês branquelo e nunca foi a Vegas ou iria acordar com cimento em torno dos pés no Lago Michigan...merecidamente...

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Limpando o espelho...

Desprezamos o mundo somente porque o mundo, em geral, nos despreza. Fôssemos mais belos, mais ricos e mais interessantes, estaríamos inclusive fazendo feira beneficente aos sem-tetos.No entanto, considero também uma segunda hipótese: desprezamos o mundo pelo o quão incompreensível é os mecanismos dele. Esperamos sinceridade, independência, individualidade, boa vontade. Esperamos o mesmo que todos: a facilidade. Entendêssemos que o mundo se faz de fora e não por dentro, seríamos menos frustrados. Muitos do que reclamam do mundo o fazem simplesmente porque são diferentes demais para as grandes profissões: advogado, administrador de empresa, modelo, ator. O resto é pedreiro, cada um construindo um muro diferente, mas que serve de alicerce para essa sociedade. Fôssemos um pouco mais loiros, seriam menores as noites enfadonhas, dialogando com outros que se parecem na nossa feiúra e na nossa incapacidade de aceitar as regras do jogo. Bebemos, nos drogamos, ouvimos algo irritantemente alto ou assistimos outra coisa incompreensível para criarmos o mesmo laço que os loiros, os altos, os ricos, criam entre si: a diferença é que o laço deles leva à diversão, a um mundo menos clichê e gozo das coisas do mundo. Os nossos são como pactos entre lemingues que decidem afundar no oceano, mas de mãos dadas...

Assim que compreendemos que somos a parte bizarra da humanidade e que nossa influência deve ser mínima, e quando pública, o mais próximos dos valores "nórdicos" do que da "cozinha", entendemos que no final, mil horas de filmes românticos cobram seu preço, três mil fotos de olhares bem delineados são mais importantes, ou ao menos fazem mais sentido, do que qualquer poesia já escrita, qualquer música composta ou qualquer gesto feito com graça e harmonia. No fim, fugiremos do nosso cheiro mas não teremos ninguém para suportá-lo, ao contrário daqueles que aprenderam que a vida é um grande playground e que todos querem descer pelo escorregador, mesmo o menino supostamente "indiferente".

John Lee Hooker - Rock Me Baby



Ella me lembra que os anjos andam entre nós. Hooker, que o demônio é bem mais divertido...

sexta-feira, dezembro 17, 2010

O homem que não podia mentir


- Amanhã, você continuará me respeitando?

O jogo era o mesmo desde que Adão avistou Eva, mas subitamente as palavras entalaram em sua garganta. Olhou para aquele corpo e sentiu novamente um desejo louco, sangue correndo pela face. Era fácil. Nem precisava soar verdadeiro, quanto mais ser verdadeiro. Era uma mera convenção social. Podia dizer qualquer coisa: "Claro", que bastaria. Nos bons tempos, recitaria Keats ou Byron. Bastaria isso, para uma noite movimentada. Saciar o demônio. Calar aquela solidão inexorável, constante, já familiar, que lhe dava bom dia, todos os dias.

Podia nem dizer nada. Só olhar e mexer a cabeça. Um tique qualquer. Ela só queria saber que seria valorizada por alguns segundos, o tempo do corpo jorrar e o sono chegar. Podia ser até uma pergunta, não importava de fato: "O que você acha?". Mas nada saia de sua boca. Sentiu um peso no coração. "Ataque cardíaco...Conveniente". Mas não. Continuou respirando, ali.Rezou pelo ataque cardíaco. Sentiu suas costas suando, desesperado.

Tentou lembrar dos velhos tempos. Teria dito sem nenhuma mentira. Talvez amasse de fato. Iria sofrer depois, mas sabia que era amor. Deu um longo gole, quase terminando seu scotch de uma só vez. Ela olhava ansiosa, quase amorosa. Queria um osso, um graveto para correr atrás e depois poder amaldiçoar: "Os homens são todos iguais". Seria uma satisfação para ela poder pronunciar essa frase estalando os lábios em cada sílaba: "Iguais..."


Sentiu-se leve. Sabia que não era a amiga morte levantando-o pelo colo. Sempre imaginou que, no último segundo, alguma entidade apareceria e simplesmente balançaria a cabeça, decepcionada. Era simplesmente o fato de não querer mentir. Querer dizer a mais crua verdade, e olhar bem fundo naqueles belos olhos: "Não. Não vou te respeitar." Ela ficou pálida. Olhou para ele como se olhasse o fundo de um poço sem fundo. Como se olhasse a escuridão. Ela se afastou, rapidamente. Ele terminou a bebida. Pagou sua conta.

No caminho de casa, dirigindo e ouvindo Ella desejando-lhe um arco-íris, ainda parou para ver algumas luzes que enfeitavam uma árvore distante. Sentiu-se como se o mundo tivesse sumido e fosse só ele, Ella e uma solidão que agora lhe acariciava os cabelos e dizia com voz aveludada: "Bem-vindo, de volta, meu eterno amor".Sentiu-se abraçado e sorriu, pela primeira vez desde sempre.

quarta-feira, dezembro 15, 2010

Noite Feliz


As luzes piscavam em cores hipnotizantes cercando árvores douradas. Ouvia risos vindo de todos os lados; famílias apontando enfeites sobre postes, em vitrines, bonecos de neve de plástico com cachecóis. Ouvia uma música que começou a lhe dar dor de cabeça; “Hoje a noite é bela...”. Ouvia numa espécie de transe, como se todo o mundo fosse só essa música. Precisou correr antes de vomitar. Mas essa corrida, desequilibrada e patética, subitamente tirou todo o álcool de seu cérebro. Lembrou. Os olhos que nunca o olhavam com desprezo. As mãos macias, muitas vezes fazendo carícias em sua barba. Seu peso de papel, pulando em seu colo. Lembrou. Os vizinhos apontavam para ele na rua e os moleques faziam gestos de cópula. A maldita. Outro dia apareceu com vestido novo. Não tinha como. Não tinham dinheiro, ele estava desempregado há tempos e ela era desocupada demais para trabalhar. Alguém trocou sexo fácil por aquele pedaço de pano. Lembrou: “Papai, o Natal está chegando. O que Papai Noel irá trazer?”. Lembrou: “Bêbado inútil. Uma hora eu vou para a estrada e sumo. Meu corpo ainda está firme”.

De longe, viu uma luz na janela. Estavam acordadas. Rezou para ser no singular. Tinha desprezo suficiente para dar neste e nos próximos Natais. Palavras bem escolhidas, polidas no coração azedo, limpas na ponta da língua, indo e vindo, esperando a chance de sair. Enfiou as mãos no bolso, esperando o seu milagre: quem sabe sobrou umas moedas, podia ir até a mercearia e comprar um doce. Achou um cigarro rasgado, só o filtro. Se pudesse rezar, talvez não rezasse, mas ergueria os punhos e gritaria todo o ódio de sua pequenez. Queria ter um deus para voltar a face. Queria ter um deus para se sentir injustiçado, escolhido, ao menos odiado por algo que não servisse de risos na vizinhança.

Quando abriu a porta viu as duas sentadas no sofá. Uma sorriu e correu para abraçá-lo. Antes, no entanto, ouviu as palavras de gilete da outra: “Vai esquentar a cama, corno”. Súbito, uma epifania. Colocou a mão carinhosamente no peito da filhinha e pediu carinhosamente para que ela fosse para a cama e se escondesse debaixo dos lençóis. Esperou a menina fechar a porta. Tirou o cinto puído em volta das calças sujas e começou a bater na mulher. Esta gritava, gemia e torcia-se. Deu até cansar. Sentou-se no sofá e ficou olhando pela janela as famílias voltando das compras. Agradeceu a Deus pelo dia. Adormeceu sentado.

Do quarto, a menina ouvia os gritos da mãe, desesperados. Pediu para Papai Noel para que não apanhasse também. Algum tempo depois, o silêncio. Ficou de olho na porta, coração disparado. Quando notou que o silêncio durava muito tempo, juntou as mãos, ajoelhou-se e murmurou baixinho: “Obrigada, Papai Noel”. E dormiu chupando o dedo.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

Dar as costas ao espelho


Chega um tempo que não se diz mais: meu amor, diria um poeta. Esse tempo não chega, ele nos é. Nos domina, lentamente, como uma cobra que nos abraça, carinhosamente, até nos transformar em pasta e nos devorar. Lembro-me de uma bronca por causa dessa imagem: o oroboro. O fim é o início e vice-versa, numa temporalidade circular, mítica. Assim, cada passo há de encontrar o primeiro e o último. Fazemos dessa andança uma corrente, que nos aprisiona no mesmo lugar, mesmo quando nossos olhos parecem focar longe.

Chega um tempo de dizer: não há mais nada a dizer. Tempo de olhar a estrada de perto novamente, tentar sentir o sol na pele, rir do fato de ainda se rir. Fingir que na luta entre a vida e a morte, nosso ser que escorre por nossos dedos ainda aqui está. Sabe-se lá aonde o nariz irá apontar. Sabe-se lá quantas músicas serão cantadas (ainda se canta na estrada?). sabe-se lá se dessa vez haverá o caminho de retorno.

Chega um tempo em que importa é sentir qualquer vento batendo na cara, mesmo que seja em direção ao muro. Que importa? Somos aquela pegada pisada e repisada e, em certo ponto, haverá chuva, haverá bichos, haverá plantas, haverá homens cortando as plantas e então nada mais haverá. Isso acalma o meu demônio, à noite. Isso desperta a última viagem, aquela que nada pode dar errado pois não importa para aonde se vai. Importa ir. Importa que, olhando para trás, já veja as nuvens se formando, prontas para seu beijo delicado e que irá apagar os rastros que ficam.

Chega um tempo em que as palavras roubam o mundo e elas precisam se calar...

0

As olheiras eram sinceras, assim como um sorriso de quem matou alguém ou alguém morreu. A fumaça era farta, tanto quanto o som de garrafas sendo abertas e consumidas. Eles não se conheciam de verdade. Eles se conheciam naquele ambiente controlado das palavras inteligentes, das músicas escolhidas à dedo, dos livros que podiam ser a qualquer momento deixados embaixo da cama. Ela era ainda pouco curtida pela vida, apesar de estar numa velocidade absurda e olhar para tudo com a curiosidade do recém-nascido: cometa. Ele era mais curtido, mas estava arrastando-se com os pés pesados e olhava tudo como se fosse o homem mais antigo do mundo: meteoro.
Pois esses astros tão aparentados mas tão diferentes um dia entraram em rota de colisão.O dia do som das garrafas, creio. Era a velocidade contra a massa sólida. Um físico explicaria isso sem nenhum olhar poético e estaria certo. Corpos em colisão tendem a se atrair pela gravidade e aumentar a velocidade quanto mais se aproximam. Paradoxo: é isso que garante que a destruição é iminente. Um poeta diria que Orpheu se volta para olhar Eurídice para garantir que ela está bem: se afastam e o semideus irá garantir a eternidade dessa troca de olhar fugaz pela lírica que invadirá o imaginário da humanidade. Não sendo físico nem poeta, chamaria de "lei da vida": entenda-se como se quiser, cada um com sua própria lei.
Há um momento, o qual chamarei de momento "0": nesse, todas as músicas são de comum acordo; todas as carícias são sentidas com um frio na barriga; todos os olhares são mútuos. Um físico dirá que só existe um momento "0" pois antecede alguma outra reação. O universo, continuará, é uma reação, que começou lá atrás, no Big Bang. Somos então, mero retorno. Um poeta dirá que será esse o momento único, que ilustrará toda uma vida e será suspirada no leito de morte. Somos então mera melancolia. Eu direi que tenho poucas fichas para qualquer aposta mas sei que se existe uma coisa que o ser humano me causa, é o espanto. Não a surpresa, mas o espanto. Entenda-se como se quiser, cada um com seu próprio espanto.

Rito


A data não começou aleatória. O menino do meio tossiu por dias, febrilmente. O médico disse: "Não é nada", mas o menino teimou em continuar tossindo e aumentando a temperatura do corpo. Um dia, não tossiu mais. O pai decidiu aquele dia como obrigatório para que toda a família se reunisse e almoçasse junta, uma vez por ano. Eram oito, menos o menino, ficaram sete. Uma tia, irmã da mãe, solteirona, como se dizia, meses depois morreu também. Tétano. Foi abrir uma lata enferrujada, não cuidou do corte e morreu dormindo, com o tricô ao lado. A mãe decidiu começar a fazer porta-retratos. Artesanais, com detalhes nas laterais: para o filho morto, colocou anjinhos tocando trombetas. Para a tia, depois de muito pensar, colocou uma santa qualquer, que achava que combinava com a irmã. Durante alguns anos, todos almoçavam e os porta-retratos ficavam nos respectivos lugares dos ausentes. A mãe deu para servir um prato para cada ausente também e o pai pedia que todos rezassem antes de comer.
Um dia, o filho mais velho casou e se mudou, para longe. Não mais poderia ir aos almoços. Duas ausências depois, a mãe fez um porta-retrato com anzóis e âncoras, o filho era marinheiro, morava na Ásia. A foto do mais novo estava ficando amarela, como da tia, mas ninguém se importava. Uma vizinha, sabendo do fato, disse que era mau augúrio colocar a foto do filho vivo daquela maneira. A mãe disse que toda distância era uma morte.
Quando o pai morreu, do coração, parou-se de rezar antes de comer. Mas a mãe colocava sempre sua comida preferida, e lembrava sempre de deixar o saleiro próximo ao retrato emoldurado por enxadas em miniatura e um burrinho. Colocava também mais verduras no prato do filho mais velho, pois imaginava que ele precisaria. Assim, os anos passaram-se.
Um a um, os filhos foram se mudando e deixando de voltar para aquele almoço. Nem a mais velha, que a mãe tentou ensinar a fazer os porta-retratos, voltava mais. Um a um, foram ganhando porta-retratos na mesa. Um dia, a mãe, após preparar incansavelmente o almoço e servir toda a mesa, lembrando de detalhes como o saleiro, de tirar a gordura da carne da filha mais nova, e de limpar todos os porta-retratos, colocou um novo na mesa. Com uma foto antiga, de uma mulher que sorria: esperançosa da vida. O porta-retrato era emoldurado com pequenas fotos de todos aqueles que nãp mais se sentavam à mesa. No seu prato, antes de comer, colocou veneno de rato, e decidiu rezar, mesmo não sendo mais um hábito.

domingo, dezembro 12, 2010

Babilônia

Era o tempo dos discursos prontos. Não importava tanto e sim o jeito como se movia e a disponibilidade em aceitar as coisas menos ortodoxas possíveis. Jovens assumindo todas as suas taras e complexos, procurando qualquer foco de fumaça ou sons de aspiração, entre grupos e grupos. Claro, a música tinha que ser a mais tosca e explicitamente sexual possível. Claro, alguém decidiu colocar um tipo de luz que hipnotizaria um elefante. E os corpos, num fluído incessante entre a sala e um quarto decorado com camisinhas na porta, fingindo um riso.
Ainda, era o tempo das falas mecânicas. Ninguém de fato dizia nada. Tudo era motivo para beijos e carícias. Travestis dançando em grupo, um árabe falso mostrando a bunda, duas meninas batendo-se mutuamente com chicotes e palmatórias. Falsos homens descobrindo-se homens; homens descobrindo-se falsos; mulheres descobrindo suas peles em cima de uma mesa que iria cair e quebrar estrondosamente.
A tristeza era, no entanto, a mesma. Não se deixa um câncer em casa mesmo quando se vai olhar o sol ou comer frango no domingo com a família. A tristeza amarrava suas mãos e o impelia ao carinho menos desumano, às palavras mais próximas da infância, aos beijos que olhavam nos olhos antes. Mas era só uma forma de, ali, também não estar. Não haveria salvação para ninguém e sua sinceridade momentânea seria menos do que uma bóia no grande naufrágio que logo se abateria sobre aquele lugar.

Segurou, com força, nas mãos de dedos longos e finos e conseguiu soltar a única fala que sentiu vir do coração: "Que venha a vingança do Senhor".

sábado, dezembro 11, 2010

Fragmentos de um discurso amoroso


Não compreendia que o que amamos somos nós, num espelho desconexo e uma imagem que ali, ao nosso lado, colocamos, são nossos sonhos: de algodão-doce, tão palpáveis quanto a neblina. A qualquer frase dita, sem ser aquela que imaginávamos melhor, o castelo ruiria. A qualquer gesto menos quixotesco, como passar manteiga no pão, os pés começariam a querer correr, para longe, para nunca. Ao cheiro humano, sentiríamos a náusea da existência se consumar. A qualquer escolha de música, veríamos que nossa trilha sonora ainda não foi composta. A ampulheta virada e a areia escorrendo lentamente seriam nossos companheiros inseparáveis.

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E digo, do fundo de um ser que ecoa, vazio como uma catedral, que o amor vale pelos dias que ele nos ilusiona. A mágica há de ser descoberta, é verdade, mas até lá, a areia da ampulheta irá, misteriosamente, parar. Até lá, o aqui será um lugar menos medonho para se estar.
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Precisas saber: estou a espera, olhando para a porta, sentindo o coração disparar aos sons dos passos.Não demore.



Lá.
Gosto do som.
Da ideia.

Lá.
Nunca aqui.

Lavar copos

Ela imagina que ninguém, além dela própria a vê. Ela sabe que muitos a olham, mas olham o que? Olham um invólucro ou o chapéu do Petit Prince, sem conseguir ver o que ela sente ser de fato ou o elefante. Esse olhar viciado vai dando-lhe uma carga de tristeza que seus ombros começam a não suportar. Ela quer rir, ela quer dançar e ela quer cantar, mas aos olhos dos outros ela parece só uma garota com palavras difíceis e referências esquisitas. O outro é uma grade, e uma palmatória.

Mas ela não imagina que, ao dizer que precisa lavar os copos, ela ergue um feitiço contra o tempo presente, contra a vida cronológica, e cria seu próprio mundo. De lá, do alto de sua torre de margaridas e borboletas, ela lança uma corda invisível. Esperando, como todos nós, que alguém finalmente enxergue e escale a torre, a levante pelo colo e diga: estamos em casa.

The Dirty Old Man ou A mulher mais linda da cidade

Deve ter sido meus olhos já fechando pelo álcool e aquele resto de brilho de tempos menos duros, mas ela olhou para mim. Como quem olha um objeto estranho, destoante do lugar. Ela era a mulher mais linda da cidade dos meus tempos menos tristes, menos agudos. Olhos como um lago calmo que aparece miraculosamente entre ruínas de cidades fantasmas. Pele clara, virginal, daquela cor que a civilização perdeu e ficou só nas iluminuras dos codex monásticos.Entretanto, era aquele sorriso estranho e quase menosprezando a tudo, que destacava-se. Por isso, o inusitado da situação. Feio, suado e extremamente avesso a simpatia, eu seria o último homem da cidade a chamar sua atenção. Ainda assim, ela se aproximou e falou algumas palavras. Eu não entendia nada mas gostava do movimento daqueles lábios. Provavelmente falei algumas coisas que também ficaram misturados entre o som alto de um rock qualquer e os risos dos outros.Em certo ponto, eu a beijei.

Então, entendi: ela era o espírito de céus, de cheiro de canela, de sons harmoniosos de saxofones, mas era também um tempo passado, distante. Um tempo que não se presentifica entre lençóis queimados por cigarro, copos com marcas de batons de cores e formas diferentes, um corpo que insiste em morrer. Ela seria aquela dor que surgiria, de tempos em tempos, de tudo o que podia ter sido e nunca se foi. Uma miragem divina e uma cicatriz no peito a lembrar que, não importa o quanto se fuja, nunca se foge dos sonhos antigos e dos tempos que o sangue ainda corria limpo. Ela se virou, mais triste também e eu nunca saberei ao certo o que a levou até ali ou se ela de fato existiu além dos segundos em que a existência fez uma última piada.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

Marcas no espelho

Dedos traçam,
aproveitando a fumaça e o calor,
signos solitários
no espelho.

Em pouco tempo,
o ar frio irá apagá-los.
Ninguém chora. Ninguém lamenta.

Não foi criado um deus
para esses símbolos difusos,
nem o dedo criador se importa tanto.

Às vezes, um olhar intruso,
tenta congelar o tempo
entre as marcas tornarem-se fantasmas
e o corpo indefinido.

Aí, quebro o espelho,
com socos, e sangro.
Deus está entre os murmúrios,
e os ais da existência do dedo.

O sangue escreve
um traço grosso.

Essa é minha escrita.

Espelho em frangalhos

Sou múltiplo. Sou aquele que suspira em retinas alheias, de ombros curvados e, ao mesmo tempo, tenta rir do cachorro que corre atrás do rabo. Sou múltiplo pois temi ser sozinho, nesse mundo em que ser sozinho se constitui crime contra os bons costumes, passos apressados de medo, murmúrios entre dedos apontados em minha direção.Sou múltiplo porque a História de minha humanidade matou messias e condenou galileus ao silêncio; invadiu com ânsias as polônias durante o sono e fincou bandeiras tremulantes em nome de democracias de fachada. Sou múltiplo porque fui índio, capitão de galés e beneditino. Sou múltiplo pois estou aqui, em Tóquio, em Frankfurt, em Quixombó. Sou múltiplo devido a linha de produção que corre rápida, com peças exigindo seus parafusos e roscas e suas manoplas já que no final haverá um sorriso, em forma de dinheiro e corações em disparada pelo vício do novo, do consumo.Sou múltiplo pelas páginas de internet, pelas lombadas dos livros descansando nas estantes, pelas palavras que perdem a conexão numa memória analógica, pelos sons que misturam o jazz do estéreo, os gritos da televisão, os miados doentios de gatos nos telhados, as sirenes salvando e condenando vidas, os outros de minha espécie em brigas ou amores fellinianos, um pedir "amor" que nunca poderá ser atendido e entendido, um exigir "vá" que será celebrado e carpido pelas horas. Sou múltiplo pela minha desatenção em coisas bonitas, sonoras e caras.Perdi a aula de vida...

Mas essa multiplicidade é o soro que me cura de tentar achar as respostas que responderiam uma melancolia que não é só minha e não ficará só em mim. Somos nós os espelhos dos outros, podres desfigurados cambaleantes, tonteando e se esbarrando mundo afora, mundo adentro, procurando um rosto em que se resgatar e se fiar. Essa multiplicidade é o mal que me proíbe de correr atrás do meu próprio rabo, satisfeito com o dia, com as nuvens em forma de algodão que se formam num espetacular azul como nunca. Essa multiplicidade é que me leva ao espelho, toda manhã, desejando ser somente o rabo, ou quem sabe aquela última nota que ressoa de um trompete tocado há trinta anos, num bar escondido no Village, um pouco antes do sol nascer e a vida recomeçar a mastigar e digerir.

domingo, dezembro 05, 2010

No dia dos meus anos

No dia em que a terra completa mais uma volta em torno do sol, comemoro meus anos. Como todos, como tudo. Mas meus anos não são iguais, nem olhando para trás, nem olhando para frente e definitivamente, muito menos olhando para agora. Olhando para trás, são muitos os rostos que não mais aqui se assemelham.São muitos os sonhos desejados como gotas de água no deserto das aspirações humanas. São muitos os risos por, paradoxo, imaginar não estar aqui, nesse momento, saudando aqueles risos ingênuos. São muitas as noites revirando-me, desejando aquilo que hoje já não são sangue escorrendo e forçando o coração a dançar.
Olhando para frente, a dúvida se plantarei uma árvore, talvez nunca escreva um livro e a certeza de não gerar outro ser humano da minha pobre genética confusa. E alguns planos, para me consolar quando a noite decide me desafiar para o jogo, quando planos são somente bilhetes de resgate de algum náufrago nadando em direção a uma ilha perdida no oceano do acaso. Olhando para frente, muitas vezes desejo que seja o último ano que tenha que testemunhar. Olhando para frente, temo pelo que virá.
No entanto, é esse presente inconcebível, que insiste em existir em meus sentidos, apresentar-se absurdamente igual e absurdamente conhecido, que me leva a continuar. Não numa ação meramente protocolar, mas existir dentro dos meus limites. Existir enquanto ser que se indigna com os outros e consigo próprio. Existir como ser que ri dos outros e de si próprio. Existir enquanto testemunho que irá se apagar, não de um suposto universo inteligente, mas da graciosa desarmonia entre esses seres que criaram coisas como celebrar o dia em que a terra completa um ciclo. Parabéns para nós.

sábado, dezembro 04, 2010

Sublime

Notava, sem grandes êxtases mas satisfeito, que os anéis de fumaça que expirava estavam cada vez mais redondos e perfeitos. O sol que entrava pela janela atrás de sua cabeça ajudava naquele quadro. Com o pé conseguiu ligar o som, e imediatamente um solo de trompete completou aquele momento. O que mais se poderia querer no mundo? Olhou para o lado da cama e pensou em muitos corpos que poderiam ali estar. Sabia, entretanto, que em determinado momento eles se moveriam e desmontariam aquele frágil estado, em que nada existia além da cama e dos anéis de fumaça. Sentiu-se então inspirado para escrever uma história edificante. Daquelas que a leitura comove tanto, que fazem casais se olharem como se fosse a primeira vez; solitários abrir a janela e respirar fundo o ar; crianças abrirem um longo sorriso faltando, talvez?, um dente. Se ele pudesse manter por mais dez minutos aquela sensação...
Correu ao computador e esperou com impaciência todas as páginas e programas se abrindo e fechando. Finalmente começou a teclar. A primeira frase saiu fácil: "O sol sorriu virginalmente para todos naquele dia. Sem restrições, seus raios entraram em cada coração, em cada alma e abraçou-os com força, maternalmente..." O celular tocou. Foi atender, acendendo outro cigarro. Era uma voz feminina, perguntando se gostaria de beber algo mais tarde.Aceitou, foi se banhar e se lembrou de digitar uma outra coisa antes de salvar o arquivo: " Mandar o terno para a lavanderia".

Simpáticos

Tenho andando muitos anos por aí, vendo muitas coisas: nem todas grandiosas mas o que me atraí é a pequeneza de uma espécie conhecida por ser humano. Quanto menor, mais se divertem. Um trago numa garrafa vale anos de escravidão atrás de balcões ou atendendo telefones. Um beijo vale gerações de homens, mulheres e crianças surdos e mudos. Espécie divertida, essa. Aprendeu a fugir do seu próprio espaço e ganhou o poder de desvencilhar-se do tempo, deuses antigos e esquecidos. O que faz esse espécie com isso? Usa para recordar-se do balcão e do telefone, surdas e mudas.
Não posso reclamar. Meu jogo é outro. Anoto, muitas vezes apenas nas retinas cansadas de meus olhos, suas reações. Uma bola lhes desperta urros. Abraços lhes despertam cores nas bochechas. Às vezes, inventam sonhos que são seus próprios carrascos e cada dia mais distante torna-se uma chibatada. Muitas vezes andam em dupla e até geram mais de sua espécie para combater um mal invisível, criado pela ausência deles mesmo: deram-lhe o belo nome de solidão.
Me envolvo com eles. Interajo. Até me comovo. E sempre me apresento da mesma maneira: "Please allow me to introduce myself/I'm a man of wealth and taste/I've been around for a long, long years/Stole many a man's soul and faith" O que eles ouvem? Que sou um homem rico e de bom gosto e gostam também de mim. Por isso eles me atraem tanto...são tão simpáticos...

B.

Lentamente devorando uma coxinha, ela tentava se lembrar da lista completa de compras: "sabão em pedra, cebola, ovos, um docinho para alegrar o dia, comida para Julio, o gato, talvez dois docinhos, agulha e linha para arrumar uma saia, três docinhos parecem uma ideia decente..."Súbito, para poucos desafortunados, ela viu um rosto e dois pares de olhos em sua direção: "B.", ela deu-se conta, sem a certeza. Sentiu sua boca secar e parou de mastigar. "Quantos anos?" . A música daquela noite era "Cheek to cheek", cantada como um anjo por Ella Fitzgerald. Ecoou depois por anos, até encontrar uma sombra na memória e lá se esconder. Bebeu naquele dia um dry martini e uma gota parecia estar descendo ainda no momento.E as gotas de lágrimas de B. Ela não sabia dizer o porque mas deixou de sentir atração por ele. Mas gostava muito do seu jeito, do seu coração e queria continuar sendo sua amiga. Pelo menos foi o que ela disse, mesmo não significando cada letra como verdadeira. Ele nada disse. Ou disse, naquela lágrima gorda que deixou um rastro iluminado pelas luzes da vitrine da loja de fogões ao lado. Ela ainda lembra do suspiro que deu ao vê-lo se virar...
Limpou a boca com rapidez pois o homem estava vindo em sua direção. Aí, sentiu o coração num descompasso louco e quase pulou da cadeira para abraçá-lo, tomada pela certeza de que B. era o homem que nunca surgiu depois, e hoje, sem sua beleza da juventude, seu medo era morrer e o gato se alimentar de seu corpo. B. era o homem que abriu seu coração e deu-lhe o diamante em forma de água, mas ela era jovem, cheia de sonhos e vontades. Ele era aquilo que impediria os dias se esvaírem sem cor, sem som e sem memória.
Não era B.

A.

E ele sentiu aquele órgão, comumente conhecido por coração, alterar-se e acelerar-se. Quinze anos? Não, mais de trinta. Mas sentia-se aos quinze.Na verdade, aos quinze não poderia sentir-se assim. Mas enfim, o beijo dela tornou-o, se não melhor, pois nem um beijo pode ser deus, mais humano. E olhou seus cabelos negros e desejou nunca deixar de desejá-los. Mas, pela segunda vez, a vida é longa e a alma é negra e já queria saber que esse amor seria curto.Ao mesmo tempo, lembrar-se daqueles olhos tão meigos e desafiadores era sentir o sangue disputar a primazia do dia, do sol, da primavera. Os lábios...Ah, poderia, naquele longo segundo, morrer, e imaginava-se entrando no Olimpo e sentando-se com os deuses só pelos lábios...só pelo beijo.
Tocou o relógio, e o mundo voltou à sua órbita.Lentamente, os astros continuaram sua rota silenciosa, cuidadosa pelo universo. E olharam a hora. Era tarde,pelos padrões humanos. E a deixou numa esquina sem nome, sem data, sabendo que todos os dias sem a deixá-la, sem vê-la, seriam dias que estaria ali, esperando pela volta dela. Ali, em qualquer esquina, ilusionando ser aquela, ele estaria para sempre, esperando pelo beijo que corrompeu o tempo, o espaço e seu coração.