quinta-feira, abril 12, 2012

  Queria nunca mais escrever nada que tivesse um "eu". Mas também não tenho a técnica refinada o bastante, nem o temperamento generoso, para narrar algo como se fosse um rapsodo. Enfim, o que faço com as palavras ultimamente é rodá-las, de um lado ao outro do cérebro, esperando ouvi-las ou vê-las. Nesse exercício, meu corpo ainda se torna menos diapasão e mais o muro seco e sem reboco, a cruzar de ponta a ponta uma rua. Sadisticamente, ergo esse muro-eu quase alto o suficiente para tampar qualquer visão, deixando uma fresta em que se vislumbre algo parecido com uma luz. Não se pode ver nada, no entanto, só o que parece algo colorido e vivo. Alguns chamarão de pré-poesia. Eu chamarei de epifania cíclica do fracasso deste eu que insiste em querer ser o filtro de si mesmo. Por isso, agora faço puro escarnio deste eu que vos fala. Assim, quem sabe, me encontro novamente.

terça-feira, abril 10, 2012

Abraços

  Chegará o dia dos rugidos e seremos livres. Não mais contarão  quantas vezes fizemos o outro sorrir, nem quantas vezes nos ajoelhamos para o idolatrar. Cessarão os movimentos de mãos em direção a mãos, de pés tentando acompanhar pés, de quadris se oferecendo a outros quadris. Jogar-se-á pelas janelas, em júbilo infernal, as listas com telefones de pessoas que nunca se viram; os bilhetes de espera por alguém que nunca virá e, quando vêm, não sabemos seu rosto; as fotos de extensões genéticas que se afastaram sem olhar para trás.

A mentira que se criou, quando o fraco temeu o forte, pela palavra e na palavra, será finalmente calada pelo rugido. Não mais olharemos aos céus com lágrimas beatas sofridas, nem louvaremos pela fraca condição humana. Acenderemos um cigarro, sim, mil cigarros, pela morte sem culpa e sem remorsos que construiremos graças ao calor do dia. Nus, rolaremos como animais uns sobre os outros, despejando litros de novos maquinários fecundados em fornos de produção baratos, ou como se diz antes do rugido, no ventre.

Não haverá mais longas palavras, nem longas frases, nem ideias que se perdem ao vento, entre um som que emana de cada célula animal e a vontade sem limites e sem razão do amanhã. Devoraremos uns aos outros, guardando o máximo de energia para algo que nem mais se nomeia: apocalipse, falta de recursos naturais, estratégia de sobrevivência? Nomes para que e quem? Ouvir-se-á, no escuro, o rangir dos cães fugindo de cães maiores ainda.

E não mais haverá um Filho, nem um Príncipe. Quem sabe, havendo Deus, e Ele ainda querendo aproveitar da humanidade, não haverá alguma bactéria que deixará sobrar apenas alguns, por algum critério misterioso, mas que ao fim e ao cabo, será o dia um antes do final, que antecederá o dia um antes de outro final, num ciclo infindável de ruídos e parábolas; de dentes afiados e sorrisos polidos; de mãos arrancando membros e apertos de mãos de pais e filhos?

O rugido precede ao abraço que precede ao rugido.