sexta-feira, dezembro 17, 2010

O homem que não podia mentir


- Amanhã, você continuará me respeitando?

O jogo era o mesmo desde que Adão avistou Eva, mas subitamente as palavras entalaram em sua garganta. Olhou para aquele corpo e sentiu novamente um desejo louco, sangue correndo pela face. Era fácil. Nem precisava soar verdadeiro, quanto mais ser verdadeiro. Era uma mera convenção social. Podia dizer qualquer coisa: "Claro", que bastaria. Nos bons tempos, recitaria Keats ou Byron. Bastaria isso, para uma noite movimentada. Saciar o demônio. Calar aquela solidão inexorável, constante, já familiar, que lhe dava bom dia, todos os dias.

Podia nem dizer nada. Só olhar e mexer a cabeça. Um tique qualquer. Ela só queria saber que seria valorizada por alguns segundos, o tempo do corpo jorrar e o sono chegar. Podia ser até uma pergunta, não importava de fato: "O que você acha?". Mas nada saia de sua boca. Sentiu um peso no coração. "Ataque cardíaco...Conveniente". Mas não. Continuou respirando, ali.Rezou pelo ataque cardíaco. Sentiu suas costas suando, desesperado.

Tentou lembrar dos velhos tempos. Teria dito sem nenhuma mentira. Talvez amasse de fato. Iria sofrer depois, mas sabia que era amor. Deu um longo gole, quase terminando seu scotch de uma só vez. Ela olhava ansiosa, quase amorosa. Queria um osso, um graveto para correr atrás e depois poder amaldiçoar: "Os homens são todos iguais". Seria uma satisfação para ela poder pronunciar essa frase estalando os lábios em cada sílaba: "Iguais..."


Sentiu-se leve. Sabia que não era a amiga morte levantando-o pelo colo. Sempre imaginou que, no último segundo, alguma entidade apareceria e simplesmente balançaria a cabeça, decepcionada. Era simplesmente o fato de não querer mentir. Querer dizer a mais crua verdade, e olhar bem fundo naqueles belos olhos: "Não. Não vou te respeitar." Ela ficou pálida. Olhou para ele como se olhasse o fundo de um poço sem fundo. Como se olhasse a escuridão. Ela se afastou, rapidamente. Ele terminou a bebida. Pagou sua conta.

No caminho de casa, dirigindo e ouvindo Ella desejando-lhe um arco-íris, ainda parou para ver algumas luzes que enfeitavam uma árvore distante. Sentiu-se como se o mundo tivesse sumido e fosse só ele, Ella e uma solidão que agora lhe acariciava os cabelos e dizia com voz aveludada: "Bem-vindo, de volta, meu eterno amor".Sentiu-se abraçado e sorriu, pela primeira vez desde sempre.

6 comentários:

  1. Keats? Byron?
    A cada post admiro-te mais.

    "Absence - that common cure of love"
    Lord Byron

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  2. Paola: miscigens@hotmail.com

    Victoria: Pois é...dois poetas que ressoam aquilo que nos falta: alma...

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  3. Exatamente!!!
    O que achas do meu amado, Álvares de Azevedo?!

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  4. "...Não te maldigo,
    Maldigo o meu amor!..."

    Intrusa, mas apenas lembrei dessa sábia frase.

    P.

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  5. "... Oh! Fala-me de amor - eu quero crer-te
    Um momento sequer..."

    Mui sábia, tertuli-a!

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