sábado, março 05, 2011

Os dias cobram seu preço

  Tentou segurar o ar o máximo possível. Contou mentalmente quanto tempo resistiria, sem respirar, sem necessitar do mundo. Em menos de um minuto, desistiu. Deitou-se, olhando o teto do quarto, manchado pela fumaça constante de cigarro. Brincou por algum tempo de tentar imaginar alguma figura naquela mancha. Mas seus olhos cansaram-se e adormeceu.

 Não houve nenhum sonho. Acordou como acordava todos os dias de uma vida que poderia ser contabilizada em grupos. Grupo de sobreviver: 80% dos dias. Grupo de agradar aos outros ou não desagradar a ninguém: 18%. Grupo de fugir: 1%. Grupo de sorrir: 1%. Fazendo essa conta mental, fez força para conseguir sorrir e manter-se acima, ao menos, da fuga. Não conseguiu e já era tempo de sobreviver e viver aos outros.

 No caminho do trabalho, reparou que os dias costumavam ser menos cinza, mas não tinha certeza se isso era uma lembrança ou algum filme que vira recentemente. Também teve a impressão de que, em algum lugar da memória, alguns sentimentos costumavam aquecer o peito e acelerar o coração. Acendeu um cigarro e pensou em alguma coisa que poderia ter causado tal sensação. Na curva da avenida, bem no alto, um outdoor mostrava  um belo hamburger. Não conseguiu sorrir.

 Na volta, novamente a ideia de que o mundo andava num ritmo mais lento, menos ruidoso e mais compassado. Os sons das buzinas e dos escapamentos davam lugar a algum tipo de melodia, que seus ossos insistiam em vibrar. As luzes dos freios e dos semáforos inexistiam em algum cheiro de flor que juraria ainda sentir. Colocou a mão no peito e sentiu, assustado, que o coração se movimentava em saltos descompassados. Provavelmente, seria um ataque cardíaco e todas as lembranças eram de algum lugar, de algum tempo, que a noite escondeu em seus braços. A grande noite, invenção de nossos medos, agora não mais conseguia esconder aquelas sensações.

 Os motoristas em volta do carro batido e do cadáver, apontavam para a expressão infantil do sorriso num rosto calmo, como quem aponta para si mesmo.

2 comentários:

  1. Acho aquela expressão pertinente a todos os seus textos: tomanocu. Você é surpreendente!

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  2. Se você tirar a foto do bebê "bonitinho" essa postagem beirará a... Pensando bem, não vou falar nada.

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