segunda-feira, março 07, 2011

Conversas na madrugada

   Não era para ser. Nem intentava. Começou com um sussurro vindo do outro lado da parede. Encostou o ouvido e alguém lhe perguntava se estava dormindo. Ficou sem saber o que responder. Seria com ele? Escutou novamente. Ninguém respondeu do outro lado. Era uma voz, feminina e arranhada, como se muita vida tivesse passado por aquelas amígdalas e cobrado seu preço. Novamente. Decidiu responder, baixinho. Não, não estava. Tinha dificuldades. A voz aumentou dois tons: "Eu também". Nada mais se disse e o silêncio se fez, pesado como uma mortalha.

 Na outra noite, ouviu novamente. Encostou o ouvido. A mesma pergunta. Respondeu, um pouco mais alto do que na noite anterior. A resposta foi a mesma, no mesmo tom, com o acréscimo: " Odeio isso." Ele também odiava e não sabia a razão. Estava sempre cansado, com olheiras enormes e sempre com uma barba mal-feita. Diziam-lhe "o boêmio" e ele nunca quis corrigir isso. Sentia-se cansado de ter que construir alguma imagem aos outros e só sorria e concordava.

 Assim, noite após noite, palavra após palavra, foram aumentando a conversa. De poucas, passaram para horas. E uma curiosidade inexistente, surgiu. Como seria a dona daquela voz? Gostava do riso dela e imaginava-a levantando a cabeça para rir, e, quem sabe?, um longo cabelo ainda com vida, balançando no escuro. Algumas noites acariciou a parede, coisa rara em alguém em que as noites eram apenas intervalos sombrios de dias mecanizados. Algumas noites disse boa noite com carinho, mesmo sendo já manhã.

 Os dias agora demoravam mais para passar, pois queria logo deitar-se e iniciar aquela estranha sinfonia noturna, de murmúrios, risos abafados e confissões. Deram para fazer confissões. Ficou sabendo da vida dela, das dificuldades, dos resquícios de sonhos. Ele contou da sua, sem romantizar, de forma bruta e severa, como nunca. Nunca houve nenhum tipo de entrevero, de proibição ou de desprezo. Aquela parede, de concreto armado e pintada de cinza, era um quadro impressionista de danças, de rosas e de vidas que pareciam tiradas de outros tempos.

 Um dia, entrando no prédio, ouviu aquela voz cumprimentando uma vizinha. Sentiu seu coração disparar. Sentiu um frio no estômago, como se fosse faltar-lhe todo o ar. Subiu as escadas, silenciosamente, quase rastejando, para não ser notado. No outro lance, cruzou com ela. Não lhe levantou os olhos e escondeu o rosto. Ainda de relance a viu, descendo. Bela, nova e elegante. Muito mais bonita do que imaginara. Entrou em casa sentindo palpitações e tremores que nunca tinha sentido antes. Deitou-se debaixo da cama, segurando um travesseiro entre as pernas.

 De noite, quando ouviu o sussurro, não respondeu e mudou-se na semana seguinte, para nunca mais.

5 comentários:

  1. Ouvi um baque surdo. Pode ter vindo do meu estômago... Quem sabe?

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  2. j.e: lamber sabão faz bem pra alma; vá purificar-se...

    R.: Adoro a metáfora do estômago...

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  3. Que resposta mais mal educada! O comentário acima era um elogio, ora pois!

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