segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Anti-pequeno príncipe

  Acordava todas as manhãs num sobressalto. Sempre tinha o mesmo sonho: uma mulher, sem imagem definitiva, quase uma sombra difusa de luz, estendia-lhe a mão e mostrava o seu coração reluzente e vibrante. Ele tentava arrancar dela e enfiar de novo em seu peito, mas ela caminhava como uma névoa, porém mais rápido do que ele conseguia correr. Todas as manhãs levantava-se cansado.

 Quando acordava, em um pulo, buscava dentro de si qualquer resquício de sentimentos. Como um jardineiro cuidadoso, perscrustava silenciosamente, atentamente, cada possibilidade de sentimento. Temia particularmente o amor. Sabia ser esse uma praga, que quando fincava raízes, estendia-as por toda a extensão de sua alma, fincando seus longos dedos em cada suspiro. Testava cenas e imagens. Qualquer alteração, pisava as imagens com seus pés pesados aristotelicamente treinados. Isso, e as diversas decepções que foram minando a própria terra onde poderia florescer o amor. Estava gasta, seca, já velha demais para tal mal. Mas não descuidava.

 Antes de dormir, fazia uma segunda faxina. Qualquer sorriso, qualquer sugestão de afeto, transformava em mera briga pela espécie. Mera convenção social. Mera necessidade humana. Não deixava que se intrometesse em seu ser nenhum sonho, nenhuma cena de carinho. Cuidadoso, revolvia a terra e procurava qualquer coisa que pudesse ali florescer. Ficava satisfeito quando só encontrava cinzas e pedras. Ia dormir tranquilo, resmungando consigo palavras de incentivo.

 Entretanto, o amor tem mil caras e mil disfarces: vem num andar, num encontrão, num trocar de olhar, camuflado em palavras disfarçadas de acaso. Esse veio disfarçado de pedra. Como as pedras, quedou-se silencioso, sutil. Buscou as sombras, fugiu do jardineiro, mostrou-se inofensivo. Até que floriu, abrindo em pétalas de seda. Naquela amanhã, ele sorriu pois não tinha sonhado com a figura enigmática. Segundos depois, sentiu em seu peito o veneno já atuando, espelhando-se pelas veias. Abriu a janela, pela primeira vez em anos. Olhou o céu e reparou que era azul.

 Baixou os olhos, baixou a enxada, ajoelhou-se defronte aquela rosa. Chorou, pois sabia que era fraco.Chorou, pois a rosa já tinha sede.

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