terça-feira, novembro 09, 2010

Prometeus

Tendo vivido muito, e muito disso levaria ao desespero ou às lágrimas a maioria das pessoas, j.e. criou uma armadura de rudeza, desprezo e insolência, que combinava bem com o cigarro no canto da boca. Não se entenda mal: não era uma imagem forçada o olhar às vezes parado num ponto invisível admirando o nada, a estagnação. Era um olhar de quem viu muito e reviu as mais das vezes em sua mente, inquieta, perspicaz, mas também solitária. Qualquer que fosse sua escolha de vida, seria um lance de dados, movido pelo impulso do jogo e não do ganho: perder era até mais atrativo, fazia muito mais sentido.
Como acontece com todos, j.e. um dia se apaixonou. Não era uma novidade, mas era uma intensidade rara. Mediou-se então sempre por esse amor: fez a barba, colocou uma camisa limpa e passada e o tempo passou. O sol nunca favoreceu a petrificação do único, a preservação do querido, do valioso. Continuou sua rota,impassível, distante dos passos ínfimos de j.e.. Este, olimpicamente,quis tal qual os deuses primordiais, derrotar seu inimigo: criou datas, levou flores, armou um castelo de suspiros e amanhãs.
Perto do topo, seu coração humano bateu forte demais, tirando do sono eterno o Monstro, criatura que guarda a casa dos deuses. Talvez o brilho decidido, talvez o urrar do desespero de se sentir dono do seu destino, fizeram a criatura enternecer-se por j.e.. Ofereceu-se para ajudá-lo a derrotar os próprios deuses, com a condição de levá-lo junto e cumprir sua sina conquistada. j.e. concordou, com um sorriso infantil de tardes de sábado de tempo calmo.
Quando adentraram no lar dos mais altos, encontrou um espelho e um bilhete: "Olhe-se e continue se puder". Ao levantar seus olhos, já havia lágrimas de quem sabe a batalha perdida. Era tarde. Sua humanidade o prenderia para sempre naquele tempo e espaço que alguns chamam de utopia; outros de sangue. Entendeu, enquanto retornava, da casa do seu ex-amor que ele era o reflexo do próprio sol, e a chuva sua tristeza que nunca teria fim.

Um comentário: